Imigração, miscigenação, violência: como a história do Brasil deixou marcas até no nosso DNA

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- Author, André Biernath
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
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Nas aulas de história, aprendemos como o Brasil foi colonizado pelos portugueses a partir do início de 1500 — e como se deu a dinâmica entre indígenas, europeus e africanos pelos séculos seguintes.
Mas um novo estudo, que acaba de ser publicado na prestigiada revista Science, conseguiu encontrar pistas desse ado diretamente no DNA dos brasileiros de hoje.
Ao fazer o sequenciamento do genoma completo de 2,7 mil pessoas, os cientistas detectaram diversas evidências relacionadas aos fluxos migratórios, à violência e à miscigenação.
Um dos achados, por exemplo, revela a participação significativamente maior de mulheres indígenas e africanas e de homens europeus na ancestralidade do que consideramos hoje o povo brasileiro (entenda mais detalhes a seguir).
"A gente conhece a história a partir dos livros e das aulas", avalia a pesquisadora Lygia da Veiga Pereira, uma das autoras do estudo e professora do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP).
"Mas conseguir enxergar os efeitos disso no nosso DNA é algo muito potente, muito forte", complementa ela.
Como a pesquisa foi feita
A investigação envolveu 24 pesquisadores de 12 instituições diferentes. Ela é um dos primeiros resultados de um projeto chamado "DNA do Brasil", que começou em 2019 e tem como objetivo construir um banco de dados sobre a genética de brasileiros.
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Essas informações ficarão sob controle do Ministério da Saúde e serão usadas para diversos tipos de trabalhos acadêmicos — como aqueles que tentam entender as mutações ligadas a doenças mais frequentes no DNA da população e as formas de diagnosticá-las e tratá-las.
Os pesquisadores pretendem compilar o sequenciamento do genoma completo de cerca de 12 mil brasileiros, para que seja possível ter uma representatividade suficiente de todas as regiões do país e de diversas comunidades.
A pesquisa recém-publicada traz os resultados preliminares desse esforço. Ela leva em conta o perfil genético de 2.723 indivíduos que vêm de áreas urbanas, rurais, ribeirinhas e, segundo os autores, "representam diversas origens étnicas".
Vale lembrar aqui que o DNA é o conjunto de informações que determina boa parte de nossas características físicas e psicológicas, além da propensão a desenvolver certas enfermidades.
Essas moléculas ficam organizadas nos cromossomos, que estão guardados no núcleo de todas as células que compõem nosso corpo (com exceção dos espermatozoides e dos óvulos).
O genoma que carregamos é herdado de nossos progenitores — metade da mãe, metade do pai.
Isso permite entender como se deu a combinação dos genes a cada geração. Afinal, nossos pais herdaram o material genético deles de nossos avós, que herdaram de nossos bisavós, e assim por diante.
E, com a evolução do conhecimento científico e das tecnologias de sequenciamento, hoje é possível estudar e até reconstruir parte do ado através do DNA.
"Nós conseguimos contar não apenas a história dos últimos 500 anos, mas também o que acontecia antes disso nas Américas e também na África", acrescenta a geneticista Tábita Hünemeier, que também coordenou o projeto.

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Miscigenação no ado
Uma das primeiras constatações do trabalho reforça a ideia de como os primeiros séculos de colonização do Brasil foram marcados pelo que os pesquisadores classificam como "relacionamentos assimétricos".
Para entender esse assunto, precisamos conhecer dois conceitos importantes: as linhagens do DNA mitocondrial e do cromossomo Y.
A mitocôndria é uma estrutura responsável pela produção de energia dentro das células. Ela carrega genes próprios, que ficam separados do restante do genoma, e são chamados de DNA mitocondrial (ou mtDNA).
Mas o importante aqui é que nós herdamos o mtDNA exclusivamente das nossas mães.
Essa informação permite estabelecer, portanto, que existem linhagens ininterruptas formadas só por mulheres ao longo de diversas gerações e milhares de anos.
Afinal, toda filha tem uma mãe. Mas nem toda mãe tem uma filha: se a mulher gerar um menino, ou não tiver descendentes, o mtDNA dela não será ado adiante.
Em termos genéticos, portanto, é possível traçar quem é a mãe, da mãe, da mãe, da mãe… De forma sucessiva, ao longo dos tempos.
Já a linhagem do cromossomo Y representa a mesma coisa, só que do lado masculino dessa história.
Em linhas gerais (e com algumas exceções), os caracteres sexuais de seres humanos são definidos por esses cromossomos: XX em mulheres, XY em homens.
Nesse sentido, é possível rastrear, por meio do cromossomo Y, quem é o pai, do pai, do pai, do pai…
O estudo sobre o DNA do Brasil revelou uma "vasta maioria", que supera os 70%, de ancestralidade europeia nas linhagens do cromossomo Y (ligadas ao sexo masculino).
Já as linhagens mitocondriais (ligadas ao sexo feminino) trazem com mais força a ancestralidade africana (presente em 42% das amostras) ou indígena (35%).
Segundo os autores, o achado revela um ado marcado pelos tais relacionamentos assimétricos, que envolveram, de um lado, homens europeus e, de outro, mulheres indígenas ou africanas.
"E isso ilustra como os dados genômicos ajudam a revelar a história da colonização e suas consequências na diversidade genética da população dos dias de hoje", escrevem os pesquisadores.
O estudo lembra que "a maioria dos primeiros colonizadores europeus eram homens" e devemos considerar "o histórico da colonização, que gerou uma alta mortalidade entre homens indígenas e africanos, e da violência sexual voltada às mulheres desses grupos".
Hünemeier pontua que, mais recentemente, entre o fim do século 19 e o começo do 20, a tendência dos relacionamentos assimétricos foi substituída por um padrão seletivo.
"Ou seja, as pessoas aram a se casar preferencialmente dentro do mesmo grupo étnico. Mestiços se casam com mestiços, brancos com brancos, indígenas com indígenas", informa a pesquisadora, que atua no Laboratório de Genômica Populacional Humana da Universidade Pompeu Fabra em Barcelona, na Espanha.
"Isso revela uma outra face do processo de segregação, agora relacionada às condições socioeconômicas e culturais desses grupos", complementa a especialista, que também atua no IB-USP.
Embaralhamento de genes
O estudo lembra que a colonização europeia das Américas deu início "ao maior deslocamento intercontinental de populações da história da humanidade".
Entre os séculos 15 e 20, aproximadamente 5 milhões de europeus vieram ao Brasil — e forçaram pelo menos 5 milhões de escravizados africanos a tomar o mesmo rumo.
Quando os primeiros europeus chegaram à costa brasileira, estima-se que 10 milhões de indígenas habitavam o território e falavam mais de mil idiomas diferentes. Os dados mostram que entre 83% e 98% desta população foi dizimada.
Hünemeier destaca que as populações de várias partes do mundo que se encontraram e se misturaram no Brasil a partir do século 16 estavam separadas há cerca de 15 mil anos.
Vale lembrar aqui que o ser humano surgiu na África e, ao longo de milhares de anos, viajou e se estabeleceu por todos os continentes — a começar pela Europa e pela Ásia, por questões geográficas.
As evidências apontam que a entrada dos primeiros homens e mulheres nas Américas se deu a partir da Beríngia, uma enorme "ponte" de terra e gelo que se formou em períodos de glaciação entre a Sibéria (na atual Rússia) e o Alasca (na América do Norte).
A partir dali, os grupos se espalharam por todo o continente americano, inclusive pelos territórios do que hoje chamamos de Brasil, ao redor de 13 mil anos atrás.
A pesquisadora Maria Cátira Bortolini, que também assina o artigo na Science, lembra que a América é um continente com diversos climas e ambientes — do calor tropical às nevascas, das planícies desérticas às montanhas e às florestas tropicais.
A diversidade genética dos primeiros americanos — ou daqueles povos que habitavam a Beríngia e se deslocaram em direção à América do Norte — foi fundamental para permitir essa adaptação.
"As populações que chegaram aqui foram muito bem sucedidas em colonizar todo esse território num espaço de tempo relativamente curto", diz a especialista, que é professora titular do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A partir do ano 1500 da era comum, aconteceu a chegada dos europeus.
Pouco depois, ainda no século 16, milhões de africanos — muitas vezes advindos de povos que nunca chegaram a ter qualquer contato em seu continente de origem — começaram a ser trazidos à força, como escravizados.
"Nosso trabalho tenta entender como essa História antiga, dos povos originários, se acopla com a entrada dos europeus e o processo escravagista", contextualiza Hünemeier.
"Como tudo isso embaralhou os genomas das pessoas de hoje? E quais os impactos que isso traz em termos de diversidade e saúde");