O dilema de prolongar a vida dos pets: 'Foi por amor que decidimos deixar nossa cachorrinha partir'

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- Author, Julia Braun
- Role, Da BBC Brasil em Londres
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Quimioterapia, hemodiálise, cirurgias cardíacas, fisioterapia, acupuntura, dietas formuladas sob medida — o universo dos cuidados veterinários não para de crescer. E os pets vivem mais do que nunca.
A expectativa de vida dos cães quase duplicou nas últimas quatro décadas, e os gatos domésticos vivem hoje o dobro do que felinos selvagens, segundo levantamento de 2023 promovida pela Allianz Global Investors.
Entre os motivos para esse avanço, estão a melhora na qualidade da alimentação, cuidados semelhantes aos humanos, crescimento dos diagnósticos preventivos e maior conscientização sobre visitas regulares ao veterinário, de acordo com a pesquisa.
Não é raro hoje encontrar cachorros ou gatos ultraando os 15 ou até 20 anos.
Mas a longevidade estendida também levanta uma questão delicada: estamos realmente garantindo qualidade de vida para esses animais ou prolongando o inevitável às custas do bem-estar?
Especialistas e tutores se dividem entre o amor incondicional e os limites éticos do cuidado veterinário moderno.
'Iria até as últimas consequências para salvá-la'
O professor Manoel Pereira de Araújo, de 47 anos, enfrentou o dilema de até onde vale a pena insistir em tratamentos complexos — e caros — para prolongar a vida de um animal de estimação não apenas uma, mas duas vezes nos últimos anos.
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Há cerca de 14 anos, ele e a agora ex-mulher ganharam de presente um filhote de pug e, logo depois, decidiram adotar outro cãozinho da mesma ninhada. Foi assim que acabaram com a dupla de irmãos, que decidiram chamar de Haron e Amy.
Em 2017, Amy foi diagnosticada com leucemia e ficou 13 dias internada em um hospital veterinário em São Paulo. Durante esse período, Manoel e a esposa aram muitas noites dirigindo pela cidade em busca de bolsas de plaquetas para transfusão em hospitais veterinários, já que a clínica em que a cadela estava nem sempre tinha estoques suficientes.
"Naquele momento decidi que iria até as últimas consequências para tentar salvá-la", contou o paraibano natural de Princesa Isabel, no interior do Estado, à BBC Brasil. "Quando a Amy piorou, a veterinária sugeriu que fizéssemos a eutanásia, mas não aceitamos e continuamos insistimos nos tratamentos disponíveis."
Mesmo com todos os cuidados veterinários, Amy não sobreviveu. Além de todo o sofrimento com a perda, Manoel também teve que lidar com uma conta de R$ 30 mil deixada no hospital em que a cadela ficou internada. "Tivemos que vender um carro para conseguir pagar", conta ele.

Crédito, Arquivo pessoal
Em novembro ado, foi a vez de Haron adoecer. O pug convivia com sérias alergias há anos e, com 14 anos, precisava de visitas constantes ao veterinário e medicamentos manipulados: "Só com os remédios gastávamos mais ou menos R$ 800 por mês. Isso sem contar alimentação e o preços dos exames e consultas", diz Manoel.
Aos poucos, os sinais vitais do animal começaram a ficar mais fracos, ele parou de se alimentar e os tutores aram a notar manchas de sangue em suas fezes e vômito. Os exames apontavam para uma cirrose medicamentosa.
"A veterinária me explicou que ele já não tinha como se recuperar e que o sofrimento dele poderia durar horas, dias ou até uma semana, então a eutanásia era a melhor opção", conta. "Depois de muita resistência, acabei aceitando."
"Mas não foi nada fácil e até hoje penso que teria dificuldade em tomar essa decisão novamente, caso tenha outro pet."
'Estou preparada para perder meu pai, mas não meu cão'
A oncologista veterinária Juliana Cirillo afirma que casos como o de Manoel, Amy e Haron tem se tornado cada vez mais comuns.
"A relação do homem com os pets mudou muito, hoje eu diria que hoje 30% dos meus clientes se referem a eles mesmos como pais e mães do seu pet", diz.
"Já ouvi frases como: 'Meu cachorro me traz mais felicidade que meu filho' e 'Estou preparada para perder meu pai, mas não estou preparada para perder meu cão.'"
O Brasil é o 3° país do mundo com mais animais de estimação, com 149 milhões, atrás apenas de China e Estados Unidos. De todos os brasileiros, 94% já tiveram algum pet, segundo um estudo da Quaest divulgado em 2024.
A pesquisa também questionou os tutores sobre a importância de seus bichos em suas vidas e 93% disseram que seus pets são membros da família. Pouco mais da metade (58%) afirmaram comemorar os aniversários dos seus companheiros de quatro patas.
Entre os entrevistados, 94% dos tutores ainda afirmam que a sua saúde mental melhorou por ter um animal de estimação, e 90% avaliaram o mesmo em relação à sua saúde como um todo.
A pesquisa também mostrou que a forma como os pets são tratados atualmente por seus donos impacta diretamente nos gastos com alimentação, saúde e outros cuidados. Entre os entrevistados, 55% gastam até R$ 300 por mês. Entretanto, 10% dos tutores desembolsam mais de R$ 1.000 mensalmente com seus pets.

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Juliana Cirillo atende pacientes em dois hospitais de alto padrão na capital paulista.
Segundo ela, casos em que os tutores demonstram dificuldade para entender a necessidade da eutanásia ou se mostram apegados demais para tomar essa decisão têm se tornado mais comuns.
"Há uma resistência muito grande entre alguns tutores em aceitar a morte do animal", diz. "Já indiquei que alguns procurassem ajuda psicológica."
Não é raro, diz a veterinária, que clientes cujos animais receberam um diagnóstico negativo ou recomendação de eutanásia procurem uma "segunda, terceira ou quarta" opinião de outros profissionais porque não estão preparados para perder seu pet.
"Conheço muitos colegas da área e nos falamos. Então ficamos sabendo quando um cliente nosso insiste em procurar outras saídas", diz.
Ela defende, porém, a importância de saber a hora de parar, tanto quando não há perspectiva de melhora ou como quando o sofrimento atinge níveis altos demais para os padrões éticos veterinários.
"Não é sobre quanto tempo o pet vai viver, mas com que qualidade", afirma.
Por isso, diz a veterinária, é sua obrigação como profissional estabelecer um diálogo saudável, honesto e caloroso com os tutores, de forma que eles possam se sentir acolhidos, mas ao mesmo tempo priorizar o bem-estar de seus animais.
"Eu entendo os tutores, porque também tenho pets e sou alucinada por eles. Perdi minha cadela há três meses e tive medo de como reagiria. A dor foi imensa."
Tecnologia de ponta à disposição
Além da transformação afetiva na relação entre humanos e seus animais, os avanços na medicina veterinária e o crescimento da indústria de cuidados intensivos também contribuem para tornar os limites entre tratamento e prolongamento artificial da vida cada vez mais difusos, dizem os especialistas.
Uma clínica oncológica de uma área nobre na zona sul de São Paulo, por exemplo, oferece tratamentos tradicionais como cirurgia e quimioterapia, mas também procedimentos de ponta como a biópsia transcirúrgica, uma técnica que permite realizar diagnósticos sobre tecidos ou lesões cancerígenas ainda durante a cirurgia.
"Esse recurso é usado na medicina humana há mais de cem anos, mas amos a oferecer para os animais aqui no Brasil há cerca de 15", explica Marcelo Monte Mor, veterinário da clínica e físico especializado em técnicas de quimioterapia de última geração.
O centro veterinário na capital paulista também disponibiliza a eletroquimioterapia (ECT), que combina pulsos elétricos com quimioterapia para aumentar a absorção de medicamentos pelas células cancerígenas, a terapia-alvo, focada em estruturas específicas das células cancerígenas, e a quimioterapia metronômica, que usa doses baixas de forma contínua para evitar efeitos colaterais severos, além da imunoterapia.
Monte Mor ressalta, porém, que os tratamentos não devem ser aplicados em pacientes em que já se sabe que não há perspectiva de melhora ou que perdem muita qualidade de vida diante dos procedimentos.
"Nosso lema é: tempo de vida com qualidade. Não adianta prolongar a vida a qualquer custo."
O veterinário lembra que o custo dos tratamentos podem ser bastante altos também - e que boa parte da população não pode pagar. "Cada sessão de quimioterapia pode custar entre R$ 500 e R$1.000, na média", diz. "Alguns pacientes precisam fazer uma sessão por mês, mas outros toda semana."
Ainda assim, diz o veterinário, lidar com tutores que têm dificuldade de aceitar a perda de seu animal de estimação ou se recusam a aceitar a interrupção do tratamento faz parte do dia a dia de sua profissão.
"Quando um tutor procura um oncologista, muitas vezes já está preparado [para perder seu pet], o que torna a conversa sobre parar o tratamento ou optar pela eutanásia mais fácil", diz. "Mas já ei por casos em que os tutores não aceitaram e preferiram que o pet morresse em casa, dormindo, por exemplo."

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Svenja Springer, professora da Universidade de Viena e especialista em ética veterinária, ressalta a importância dos avanços em pesquisa e tecnologia, tanto para os direitos animais quanto para os donos de pets. Mas também destaca que é importante saber quando parar.
"A veterinária é uma ciência aplicada como a medicina humana e, claro, há muito interesse em desenvolvê-la mais", diz. "Mas a pergunta central hoje não é mais 'podemos fazer isso");