O avanço de igrejas evangélicas em aldeias indígenas: 'Não tem gay, família é sagrada, seguem os mandamentos sem conhecer a Bíblia'

Diácono Javã

Crédito, Vinícius Mendes/BBC

Legenda da foto, Diácono Javã, de 26 anos, lidera igreja da Tekoa Ka'aguy Mirim, em Itanhaém
  • Author, Vinícius Mendes
  • Role, De Peruíbe (SP) para a BBC News Brasil

Quando o pastor Ubiratã Silva viu o mutirão atulhando concreto na primeira coluna do futuro templo evangélico, na ponta da aldeia Tekoa Kwaray, ele lembrou novamente da noite em que o havia visto — já construído — em um sonho.

Tinha sido poucos meses antes do início da obra, ainda em meados de 2012, em uma época em que os cultos não aconteciam porque não havia lugar para eles.

"Deus me mostrou que ela seria bem aqui", conta à BBC News Brasil, batendo o pé firme no piso da igreja Oy Djaporanduá (Casa de Oração), na última rua de Peruíbe, cidade a 139 km de São Paulo.

Além de pastorear o ministério desde o início, quando da inauguração do espaço, Ubiratã também é cacique da aldeia Tekoa Kwaray, uma das 12 que habitam o território indígena Piaçaguera.

Demarcado por um decreto da então presidente Dilma Rousseff, em abril de 2016, o território corresponde a uma imensa área de cerca de 2,7 mil hectares na fronteira entre Peruíbe e Itanhaém, os dois últimos municípios do Litoral Sul paulista, cortado ao meio pela rodovia que carrega o nome de um dos primeiros jesuítas a pisar no que seria, muito tempo depois, o Brasil: o padre português Manuel da Nóbrega (1517-1570).

Segundo a Comissão Pró-Índio de São Paulo, uma organização não governamental fundada nos anos 1970 para fiscalizar políticas voltadas às populações indígenas no Estado, 358 pessoas viviam no Piaçaguera até 2023.

Esse número pode ser maior — ou menor — porque, como alerta a Coordenação Regional do Litoral Sudeste (CRL) da Fundação Nacional do Índio (Funai), há uma mobilidade intensa e permanente entre todos os territórios indígenas que cruzam, de um lado ao outro, a costa paulista.

Só na Tekoa Kwaray, aldeia chefiada por Ubiratã, vivem 35 pessoas, de acordo com o órgão.

"Sou o pastor-cacique daqui", repete ele, sempre que pode, e sempre com um sorriso.

Um homem em frente a uma igreja em uma aldeia indígena

Crédito, Vinícius Mendes/BBC

Legenda da foto, Templo da Tekoa Kwaray foi construído em 2012 e, até hoje, é o único de alvenaria dentro do Piaçaguera

'A 1ª igreja indígena do Brasil'

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O sonho que Ubiratã havia tido, como um prenúncio, não demorou a se concretizar.

Meses depois, em uma manhã da metade de 2012, ele despertou com os berros de alguém lhe chamando da rua, onde a aldeia termina e a cidade começa. Era um antigo amigo, Robson Miguel, um maestro que alçou fama após aparecer em programas de televisão cantando canções — como o Hino Nacional — em guarani, e que também saiu em jornais por viver em um castelo medieval em Ribeirão Pires, aberto ao público, na vizinhança de São Paulo.

Vale dizer que, em 2015, após Robson dar entrevistas se dizendo ex-cacique de uma aldeia guarani de Mongaguá, também no Litoral Sul, lideranças indígenas locais publicaram um abaixo-assinado dizendo que sequer o conheciam.

"O Robson estava acompanhado de um casal de missionários que tinha vindo da capital só para conhecer a gente", lembra daquele dia, orgulhosamente, o pastor-cacique Ubiratã.

"Na época, eu morava em um barraquinho de três por três [metros], e notei que eles se sensibilizaram. Na hora de ir embora, eles me falaram: 'Vamos construir uma casa para você!'".

Foi ali que Ubiratã se recordou, pela primeira vez, do sonho que Deus lhe dera: um templo resplandecido no coração da sua aldeia. Agradeceu a oferta generosa, mas colocou outra na conversa.

"A gente precisa buscar primeiro o reino do Senhor. Então, disse para ele assim: 'Missionário, não sonhei com uma casa, não. Eu sonhei foi com uma igreja!'". O trato foi feito ali, na hora.

Placa da Aldeia Tekoa Kwaray em Peruíbe

Crédito, Vinícius Mendes/BBC

Legenda da foto, Aldeia Tekoa Kwaray, em Peruíbe (SP)

Aquele casal era Arthur e Paula Bittencourt, lideranças da Assembleia de Deus de Utinga, em Santo André, no ABC paulista. Ele é filho de José Bittencourt Madureira, pastor que preside a igreja e que foi deputado estadual por quase duas décadas, entre 2003 e 2019.

José apareceu nos jornais há dois meses, escoltado por policiais após ser expulso pelos próprios fiéis de uma assembleia em Santo André, consequência de um conflito político da instituição que transbordou para um culto. A BBC News Brasil tentou contato com ambos, sem sucesso.

Mas o pastor-cacique Ubiratã não acreditou, de imediato, que o templo sonhado seria construído pelo pastor, porque vários outros — irmãos, pastores, missionários, igrejas inteiras — tinham feito promessas idênticas e sumido.

Sua esposa, Rita, (kunhã kurutsy mirim, mulher da cruz pequena) o repreendeu por acreditar no pastor, até ela ver com os próprios olhos, em uma manhã de setembro, uma carreta cheia de blocos estacionar na margem da comunidade.

"Fui lá perguntar quem tinha enviado aquilo tudo, e o pessoal do caminhão respondeu: 'Foi um pastor lá de São Paulo chamado Bittencourt!'. E eu falei: 'Eita, Jesus! O mistério é forte mesmo!'", relata Ubiratã.

Dias depois, uma tropa da Assembleia de Deus de Utinga desceu pela Rodovia dos Imigrantes, estrada que liga a capital paulista ao Litoral Sul, para começar a erguer a igreja prometida.

"A gente ficou uns três meses enchendo, todos os sábados, uma kombi de irmãos pedreiros, de comida, água, e ia todo mundo lá fazer o mutirão", relembra Robson Miguel, que organizava as caravanas.

"Era lindo de se ver: um esticando linha, outro batendo pau de árvore no chão, outro levando o carrinho de cimento, gente lá em cima enchendo coluna. Todo mundo na obra."

Igreja

Crédito, Vinícius Mendes/BBC

Legenda da foto, Entrada da igreja evangélica da aldeia Tekoa Kwaray em março de 2025

No final de 2012, o templo foi, enfim, inaugurado, ainda que sem forro no teto e calhas nas laterais — uma ausência dramática porque agora, quando chove, a água escorre pelas paredes e vaza no átrio da igreja. Por causa disso, muitos encontros tiveram que ser interrompidos para que os fiéis, rodos à mão, levassem a água novamente para fora.

Antes do primeiro culto da história da igreja, em um domingo à tarde, o pastor-cacique Ubiratã autorizou que os irmãos colocassem uma placa com o nome do ministério de Utinga no arco da porta principal, mas eles não quiseram.

"Disseram que eu podia escrever: 'primeira igreja indígena do Brasil'", recorda. É o letreiro que permanece ali até hoje, ao lado do desenho de um cocar onde, além do nome do ministério, está a frase "Tupã nhe'e ogwedjy agué" ("Onde desceu o espírito").

Robson Miguel lembra mais da ocasião. "O pastor Bittencourt mandou uma banda inteira para tocar lá em Peruíbe. Os indígenas nunca tinham visto um trompete, um trombone, nada... Eles se alegraram muito", conta, gargalhando.

Igrejas nas aldeias

Templo de madeira

Crédito, Vinícius Mendes/BBC

Legenda da foto, Templo da igreja da Tekoa Ka'aguy Mirim foi feito com madeira da própria mata que rodeia a comunidade

A Tekoa Kwaray, de Ubiratã, não é a única aldeia dentro do território Piaçaguera a ter uma igreja.

Não existe contagem oficial (há vários ministérios na região), mas algumas fontes ouvidas pela reportagem — da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), missionários e alguns moradores — dizem que pelo menos metade delas têm templos evangélicos.

Entre março e abril, a BBC News Brasil visitou cinco das 12 aldeias do Piaçaguera, com autorização dos respectivos caciques. Há igrejas em todas.

Na Tekoa Ka'aguy Mirim, em Itanhaém, por exemplo, o pequeníssimo templo — feito com chapas de madeira rosada adquiridas com o dinheiro da igreja Missão Nacional, sediada na Sapopemba, bairro da Zona Leste de São Paulo, e com troncos de árvores tirados da mata ao redor — tem cultos sempre às terças, quintas e domingos. A aldeia, que foi fundada só há alguns meses, fica na margem do Piaçaguera, em uma área que ainda está sendo reivindicada à Funai.

Já na Nhamandu Mirim, na fronteira incerta entre Peruíbe e Itanhaém, o espaço dos cultos também foi erguido em um mutirão dos próprios indígenas, no fim de 2023, depois que a Primeira Igreja Batista (PIB) de Santo André juntou cerca de R$ 7 mil em uma vaquinha entre os irmãos para doar à comunidade.

No púlpito, entre os instrumentos musicais — teclado, contrabaixo, bateria — e duas potentes caixas de som, há um retrato, pintado à mão em tinta a óleo, da sogra do presbítero Júnior (Awa wewe dju, homem da asa de ouro). Ela foi a primeira dali a se converter.

Presbítero Júnior

Crédito, Vinícius Mendes/BBC

Legenda da foto, Presbítero Júnior, dirigente da igreja de Nhamandu Mirim

Os batistas mantêm células também nas aldeias Tekoá Porá, vizinha à Nhamandu, e Amba Porá, não tão distante dali, em Miracatu, a 161 km de São Paulo.

"Temos vocação para missões", diz, empolgada, a missionária Luzia Coelho, que serve de ponte entre a sede paulistana da PIB e o trabalho no Piaçaguera. "O objetivo é alcançar para Jesus todo mundo do território."

Ela fala de si sempre no plural, em reverência à companhia inequívoca do marido, João, também um missionário. Por conta do esforço evangelizador, o casal se mudou há alguns anos para Ana Dias, uma vilinha entre bananais que, apesar de fazer parte do município de Itariri, fica a 16 km de distância do centro da cidade, quase na periferia de Peruíbe.

Casa de Reza em obras

Crédito, Vinícius Mendes/BBC

Legenda da foto, Casa de Reza da igreja da comunidade Tekoa Ka'aguy Mirim, ainda em construção. Quando pronta, ela também abrigará uma escola

Os cultos costumam seguir a liturgia tradicional: hinos da Harpa Cristã, saudações dos fiéis e, ao fim, a pregação ministrada geralmente pela liderança local. A grande diferença — que atrai irmãos e irmãs de vários outros lugares — são os louvores, muito populares entre evangélicos Brasil afora e cantados ali todos em línguas nativas, sobretudo o guarani.

Não raro, os crentes das aldeias são levados para cantá-los em igrejas de São Paulo. "É uma atração, né"Ino Tamashavo mostra os colares típicos dos marubo e seu pássaro de estimação " loading="lazy" width="747" height="421" style="aspect-ratio:747 / 421" class="bbc-139onq"/>