'Tim Maia Racional': por que cantor fez de tudo para que disco sumisse do mapa

Crédito, Divulgação/Locomotiva Discos
- Author, Tom Cardoso
- Role, De São Paulo para a BBC News Brasil
"Por que tu não esquece isso, Marisa Monte? Deixa isso para lá, Marisa Monte!", dizia Tim Maia à cantora, que queria cantar uma música... dele.
Era Que Beleza, faixa que Marisa Monte queria incluir no álbum Barulhinho Bom, de 1996. Mas Tim Maia insistiu tanto que a cantora desistiu da ideia, segundo ela contou em uma entrevista ao jornal Estadão em 2000.
A música, também conhecida como Imunização Racional, é uma das 20 canções de Tim gravadas no período em que o artista se tornou adepto do grupo religioso Universo em Desencanto.
A fase rendeu dois discos: Tim Maia Racional Vol. 1 e Vol. 2, lançados, respectivamente, em 1975 e 1976.
A gravação do volume 1, em fevereiro de 1975, completou 50 anos.
O posterior desencanto com o grupo religioso, porém, fez com que Tim Maia fizesse de tudo para que os dois álbuns caíssem no esquecimento.
Não conseguiu: cultuados por colecionadores e fãs de música, no Brasil e no exterior, os LPs chegaram a ser vendidos por fortunas em sebos.
Foi também com esses álbuns que Tim Maia se tornou o primeiro artista vindo do mainstream (segmento mais popular ou dominante do mercado) a se tornar verdadeiramente independente, fundando sua própria gravadora.
Dos excessos à purificação

Crédito, Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã
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Liderada pelo médium Manoel Jacintho Coelho, a congregação Universo em Desencanto prometia colocar os devotos em contato com seres de outros planetas.
Para isso, os fieis precisavam cumprir à risca a cartilha de deveres e rituais impostos por Jacintho, como não comer carne, não beber álcool, acordar e dormir cedo e vestir apenas roupas brancas.
Foi um amigo de Tim Maia, o também músico Tibério Gaspar, quem apresentou ao cantor ao grupo religioso.
Em 1974, Tim estava no auge da carreira musical: havia gravado três grandes discos nos três anos anteriores e, com eles, ganhou o merecido título de rei da soul music brasileira.
Tim também estava bebendo e cheirando cocaína como nunca.
Preocupado com os excessos do amigo, Tibério Gaspar decidiu levá-lo para assistir um culto da Universo em Desencanto em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.
O que Manoel Jacintho pregava, argumentou Tibério, podia fazer sentido para Tim: uma vida de purificação, preparo espiritual e desapego material que colocaria os habitantes da terra dispostos a esses sacrifícios em contato com seres de outro planeta.
Há tempos Tim sonhava em embarcar numa viagem sideral pelo espaço, de preferência a bordo de um disco voador.
Mas, para chegar ao céu, Tim enfrentou um inferno particular. Tão duro quanto largar imediatamente o álcool e as drogas, foi se desfazer da geladeira e tudo que tinha dentro. Foi-se também o fogão e o ar condicionado.
Obrigado a se desfazer de qualquer bem material, Tim só não jogou fora a cama king size. Dormir no chão já seria demais.

Crédito, Arquivo Nacional/Fundo Serviço Nacional de Informações
A fase messiânica permitiu algo que muitos achavam pouco provável naquele momento: transformar Tim Maia, um grande intérprete da música popular brasileira, num cantor ainda melhor.
Proibido de cair na farra, por conta da cartilha moral imposta por Jacintho, o cantor parou de beber, fumar e cheirar. Os famosos graves chegaram à potência máxima.
Serginho Trombone, que trabalhou nos dois discos Tim Maia Racional, relatou ao site Cliquemusic, em 2000, o martírio enfrentado pelo cantor para cumprir todos os rituais.
"Foi uma fase muito doida. O Tim vivia olhando para o céu procurando discos voadores. O pior de tudo é que ele convenceu a banda inteira a entrar para a seita. Pintamos todos os instrumentos de branco, até a bateria", lembrou Serginho, que morreu em 2020.
"Ele acabou sendo o grande prejudicado, pois teve de se livrar de todos os produtos materiais de seu apartamento. Jogou fora fogão, geladeira e até o carpete da sala."
Boicote e isolamento dos fãs
De branco da cabeça aos pés, com uma bíblia debaixo do braço, o recém-convertido fiel da Universo em Desencanto enlouqueceu os engenheiros de som e produtores da gravadora Polydor. A ordem era mudar tudo, dos arranjos às letras das músicas.
A direção da Polydor não gostou do que viu e ouviu.
A gravadora rescindiu o contrato com Tim, recusando-se a gravar um disco gospel com um artista não só identificado com a black music, mas também conhecido pelo estilo ousado e transgressor.
Seria algo como gravar um disco de punk-rock com Roberto Carlos.
Tim não desistiu e fundou a própria gravadora, a Seroma — abreviação de seu nome, Sebastião Rodrigues Maia.
Foi um momento histórico da música brasileira: um grande artista ou a gerenciar sua carreira, sem a ingerência de uma multinacional. Elas dominavam o mercado fonográfico brasileiro.
Tim se tornou dono da própria obra e história.
Mas o preço de tanta mudança foi alto. O cantor teve que se virar sozinho, sem respaldo de uma grande gravadora — o próprio artista, com a ajuda dos músicos de sua banda, ou a entregar pessoalmente os discos nas grandes lojas do Rio e de São Paulo.
Ele também enfrentou o boicote dos canais de divulgação.
Com exceção de Que beleza, talvez a canção menos doutrinária dos dois discos, nenhuma outra faixa de Tim Maia Racional tocou nas rádios.
Os fãs também não gostaram. Quando procuravam pelo novo disco do artista e viam aquela capa, com símbolos e mensagens que remetiam à Universo em Desencanto, além do encarte com as letras de louvor, não tiravam nem o LP das prateleiras.
Mais tarde, Tim deu outro nome à sua gravadora, Vitória Régia Discos, com a qual lançou todos os seus álbuns até a morte, em 1998.
Cadê o disco voador?
Em um dado momento, pelo fim de 1976, o cantor percebeu que os discos voadores jamais pousariam em Nova Iguaçu ou em qualquer outro lugar — e Tim Maia reagiu como Tim Maia.
Primeiro, Tim desejou matar o seu guru, segundo relato de Serginho Trombone. O cantor invadiu a sede da Universo Desencanto, disposto a quebrar tudo — começando com Manoel Jacintho.
Ele foi juntamente com os músicos de sua banda, igualmente indignados. Serginho Trombone, que havia se desfeito do carro, do freezer e de duas linhas telefônicas, era o mais revoltado.
Protegido pelos fiéis, o médium escapou da surra, mas não do vexame.
"O Tim estava possesso. Ele foi para a janela de entrada da Universo em Desencanto e ou a gritar para todos que avam na rua que aquilo tudo era uma grande farsa, que o Manoel Jacintho era um charlatão, que só queria o dinheiro dos fiéis. Ele gritava: 'Cadê o disco voador? Cadê o disco voador");