De Gusttavo Lima a Anitta: entenda a brecha que permite contratar famosos com dinheiro público

Gusttavo Lima durante show em 2022

Crédito, Divulgação

Legenda da foto, Lei criada em 1993 permite que artistas reconhecidos pela crítica ou público possam ser contratados sem licitação
  • Author, Leandro Prazeres
  • Role, Da BBC News Brasil em Brasília

Na última semana, artistas do mundo sertanejo se tornaram alvo de críticas por receberem cachês pagos por prefeituras do interior do país.

A polêmica começou depois que o cantor Zé Neto, que faz dupla com Cristiano, deu uma declaração durante um show que foi vista como uma crítica velada à cantora Anitta e à lei federal de incentivo à cultura.

Popularmente conhecida como Lei Rouanet, o dispositivo é constantemente atacado por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL).

"Não somos artistas que dependemos da Lei Rouanet. Nosso cachê quem paga é o povo. A gente não precisa fazer tatuagem no toba para mostrar se a gente está bem ou mal", disse Zé Neto.

A menção à tatuagem foi interpretada como uma indireta à cantora Anitta, conhecida por ser crítica a Bolsonaro.

A declaração gerou polêmica nas redes sociais e Zé Neto chegou a se desculpar pela fala. Logo após afirmação de Zé Neto no show, porém, veio à tona a informação de que a apresentação da dupla na cidade mato-grossense custou R$ 400 mil e foi paga pela prefeitura da cidade.

Nos últimos dias, foram os shows de Gusttavo Lima que ficaram sob escrutínio. Diversos veículos de imprensa noticiaram que o cantor, que já se manifestou a favor de Bolsonaro, foi contratado pela Prefeitura de São Luiz, no interior de Roraima, por R$ 800 mil.

A cidade tem pouco mais de 8 mil habitantes. Na semana ada, a prefeitura de Conceição do Mato Dentro, em Minas Gerais, cancelou o show que o cantor faria na cidade e que foi contratado por R$ 1,2 milhão.

Em vídeo, o prefeito da cidade, José Fernando Aparecido (MDB), diz ter cancelado o show após se ver envolvido no que chamou de "guerra política".

Anitta durante premiação nos EUA

Crédito, EPA

Legenda da foto, Anitta foi contratada por R$ 500 mil pela Prefeitura de Parintins, no Amazonas, em 2019

Os ministérios públicos de Minas Gerais, Roraima e Rio de Janeiro abriram investigações preliminares para apurar se houve algo ilegal na contratação dos shows. Ontem, em uma transmissão em suas redes sociais, o cantor negou envolvimento em irregularidades.

"Nunca me beneficiei sobre dinheiro público, empréstimo, ou algo do tipo. Minha vida foi sempre trabalhar", disse o cantor.

O fato é que não são apenas artistas do sertanejo que já receberam por shows pagos por prefeituras.

No meio artístico, é considerado relativamente comum que cantores se apresentem em eventos financiados por prefeituras ou governos estaduais. Anitta, por exemplo, foi contratada por R$ 500 mil pela Prefeitura de Parintins, no Amazonas, em 2019.

Mas o que as contratações desses artistas famosos têm em comum? A resposta é: todas foram feitas aproveitando uma brecha na legislação: a inexigibilidade de licitação.

Zé Neto durante show

Crédito, Divulgação

Legenda da foto, Zé Neto, que faz dupla com Cristiano, deu uma declaração durante um show que foi vista como uma crítica velada à cantora Anitta e à lei federal de incentivo à cultura

A BBC News Brasil conversou com especialistas em Direito istrativo que explicaram como esse mecanismo funciona e por que ele permite que prefeituras possam gastar dinheiro público sem licitação para contratar artistas, alguns com cachês milionários.

Eles afirmam também que, ao contrário do que alguns críticos afirmam, a Lei Rouanet é muito mais eficiente e transparente para promover a cultura do que as contratações diretas feitas pelas prefeituras.

A regra e a exceção

A lei nº 8.666, também conhecida como Lei das Licitações, foi criada em 1993. Naquele momento, o Estado brasileiro vivia um processo de reorganização istrativa poucos anos depois da redemocratização do país, ocorrida em 1985.

O objetivo da lei era padronizar e modernizar a forma como os órgãos públicos de todo o país compravam produtos ou serviços

Pela lei, a maior parte dos contratos públicos precisa ser feito após uma licitação, que nada mais é do que uma espécie de competição em que diferentes fornecedores do mesmo produto ou serviço disputam quem terá o direito de vender para o governo.

Há diversas formas de definir o "vencedor" de uma licitação. Normalmente, é escolhido o fornecedor que cobrar o menor preço desde que o produto atenda às especificações feitas pelo órgão público.

"A ideia da licitação é que a istração pública só vai contratar serviços ou comprar produtos se for possível avaliar diferentes propostas e fornecedores. O problema é que nem sempre isso é possível", diz o professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e doutor em Direito Público Wallace Corbo.

Gusttavo Lima aponta dedo para plateia durante apresentação

Crédito, Divulgação

Legenda da foto, 'Para uma prefeitura contratar um show de grande porte ela precisa estar com suas finanças absolutamente equilibradas porque um show é algo supérfluo', diz especialista

É nesses casos em que uma competição é "impossível" que as prefeituras podem usar a brecha que vem permitindo a contratação de artistas. Essa brecha é a inexigibilidade de licitação.

Ela pode ser usada tanto para a contratação de produtos ou serviços para os quais não há concorrentes (caso de uma vacina fabricada por um único fornecedor) ou para pagar por shows artísticos.

"A lei prevê que a contratação de artistas consagrados pela crítica ou pela opinião pública pode ser feita sem a realização de uma licitação. Isso acontece porque é virtualmente impossível comparar um artista com outro, logo, a disputa fica inviável. Como é que você vai comparar Gusttavo Lima com a Anitta"O ex-presidente Jair Bolsonaro, sua esposa Michelle Bolsonaro e o ex-ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência do Brasil Onyx Lorenzoni em culto evangélico em julho de 2019 " loading="lazy" width="2044" height="1150" style="aspect-ratio:2044 / 1150" class="bbc-139onq"/>