Visão feminista de classe alta não vê que igreja evangélica pode fortalecer mulher, diz autor de 'O Povo de Deus'

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- Author, Rafael Barifouse
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
O Brasil vai virar um país evangélico. Algumas previsões apontam que será no começo da próxima década, outras, um pouco mais tarde, mas elas concordam que vai acontecer.
Os evangélicos - que eram 5% da população em 1970 e são um terço hoje - caminham para se tornar maioria no "maior país católico do mundo".
É algo sem precedentes e paralelo no mundo, diz o historiador e antropólogo Juliano Spyer, autor de O Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam (Geração Editorial, 2020).
O livro já foi recomendado publicamente por algumas personalidades e políticos de esquerda. Frei Betto, o deputado Marcelo Freixo (PSB-RJ) e o ex-presidente Lula (PT) foram alguns deles. Caetano Veloso assina o prefácio.
"A maneira com que eles abraçaram o livro foi no caminho de se dar conta de que existe muito mais do que Edir Macedo, [Marco] Feliciano e [Silas] Malafaia", afirma Spyer.
"Que, geralmente, a gente trata os evangélicos como espantalhos, de forma tão rude, tão desinformada, que só serve para bater, sem dar a essas pessoas a condição de seres inteligentes que fazem opções inteligentes, apenas por serem pobres e terem pouco estudo."
Spyer diz que o Brasil precisa resolver esse preconceito com os evangélicos e que muita gente não está preparada para ter essa conversa - mas vai ter que fazer isso.

Crédito, Juliano Spyer
O livro foi um dos resultados do seu doutorado em Antropologia na University College London, no Reino Unido, em que ele pesquisou o uso das mídias sociais pelos mais pobres.
Spyer viveu um ano e meio em uma comunidade na periferia de Salvador e esteve pela primeira vez tão próximo de tantos evangélicos por tanto tempo.
Ele diz que essa convivência iluminou os preconceitos que tinha e que ele vê também em pessoas ao seu redor.
O pesquisador afirma que seu propósito com o livro - em que ele entrelaça sua experiência pessoal com pesquisas sobre o tema - é ajudar a rever esses preconceitos.
Um deles, por exemplo, é o de que as igrejas sempre tornam a mulher evangélica submissa ao homem, diz Spyer.
Outro é que esse novo Brasil evangélico vai ser "uma ditadura miliciana fundamentalista", como alguns imaginam.
A seguir, ele explica por quê.
BBC News Brasil - As previsões apontam que o Brasil se tornará protestante. Em que medida esse Brasil vai ser diferente do que a gente viu até agora?
Juliano Spyer - Há uma narrativa [a respeito disso] muito associada à série O Conto da Aia, em que o Brasil se tornaria uma ditadura miliciana fundamentalista baseada em uma relação bastante tensa de censura e de controle a partir de valores cristãos. Mas notei algo diferente em minha experiência.
Quando fazia doutorado na Inglaterra, tinha quatro casais de amigos que vinham de famílias evangélicas pobres cujos pais não tinham estudado ou tinham estudado tardiamente. Desses quatro casais, três tinham deixado de participar mais intensamente da igreja ou deixado definitivamente da religião. Tinham inclusive uma perspectiva crítica.
Então, uma contranarrativa possível é que [para as futuras gerações] a igreja se torna algo de que elas podem participar de uma forma mais branda, mais intelectualizada, mais tranquila, levando aí, portanto, a um caminho menos radical e fundamentalista.
BBC News Brasil - De que forma isso ocorreria?
Spyer - Um dos primeiros e mais importantes estudos da Sociologia foi produzido por Max Weber. Ele associa religião e capitalismo e aponta em que medida o individualismo do culto protestante, que é fundamentado no quanto o indivíduo é capaz de chegar à salvação via sua relação individual e direta com Deus, intermediada pela Bíblia.
Então, a participação na igreja evangélica cria um ambiente de disciplina em relação ao consumo de substâncias, de álcool, de drogas, uma disciplina matrimonial, em relação aos estudos, que levam essas pessoas a evoluir na direção das camadas médias.
Não sou só eu que estou falando isso. É a literatura que diz que uma das principais consequências do protestantismo, inclusive o pentecostal, é produzir ascensão socioeconômica. Uma mudança de classe social que expõe a próxima geração a um mundo muito mais laico, secular, dos ambientes universitários.

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BBC News Brasil - Seu trabalho tem um um propósito declarado de desfazer a visão estereotipada dos evangélicos. Pode, então, esclarecer de quem estamos falando?
Spyer - Se a gente olhar para os quinhentos anos de protestantismo, uma maneira prática de separar os grupos é entre o protestantismo histórico - aquele que vem do [Martinho] Lutero até o início do século vinte, com igrejas batistas, metodistas, presbiteriana, entre outras, que surgiram mais próximo da Reforma Protestante - e o pentecostal.
A partir do século 20, há esse fenômeno importante do pentecostalismo, que é o único ramo do protestantismo criado por um afrodescendente, o pastor chamado William Seymour. Não há na história do cristianismo nenhum criador de uma nova denominação, uma nova teologia, de origem africana. Ele não fundou uma igreja. Fundou uma maneira de apresentar sua mensagem que dialoga com o presente, algo muito particular do pentecostalismo.
O pentecostalismo tem uma característica curiosa. Não foi disseminado por missões, com a igreja pagando para pessoas irem para certos lugares para ensinar sua teologia, mas de baixo para cima, com pessoas tocadas por aquela nova teologia indo para lugares distantes para criar suas igrejas. Tanto que as primeiras igrejas pentecostais do Brasil surgem dois anos depois do movimento original e foram se espalhando muito rapidamente dentro dos espaços da pobreza e menos visíveis da sociedade brasileira.
Em parte por conta disso, há uma surpresa quando o pentecostalismo emerge. As pessoas olham para o lado e falam: "De onde vem isso? O que é que aconteceu? Onde que essas pessoas estavam");