Luiz Gama: A desconhecida ação judicial com que advogado negro libertou 217 escravizados no século 19

Luiz Gama

Crédito, WikiCommons

Legenda da foto, Luiz Gama foi figura-chave no movimento abolicionista brasileiro
  • Author, Leandro Machado
  • Role, Da BBC News Brasil em São Paulo

Em um dia do mês junho de 1869, uma nota no jornal chamou a atenção de Luiz Gama, advogado considerado um herói nacional por seu ativismo abolicionista no século 19. A notícia relatava que a família do comendador português Manoel Joaquim Ferreira Netto, um dos homens mais ricos do Império, estava brigando na Justiça pelo espólio do patriarca, morto repentinamente em Portugal.

Ferreira Netto tinha uma grande fortuna: 3 mil contos de réis (cerca de R$ 400 milhões em valores atuais), distribuídos em inúmeras fazendas, armazéns comerciais, sociedade em empresas lucrativas, e centenas de pessoas negras escravizadas em suas propriedades.

Em uma linha de seu testamento, publicado em um jornal um ano antes, o comendador fez um pedido comum entre grandes proprietários de escravos da época: depois de sua morte, ele gostaria que todos fossem libertados. A "alforria post mortem" era vista como uma espécie de "redenção moral e de consciência", pois, ao final da vida, os escravocratas também queriam garantir um espacinho no céu.

Ao ler a notícia, Luiz Gama procurou saber se a vontade do morto havia sido cumprida: as 217 pessoas escravizadas pelo comendador tinham sido libertadas como determinava o testamento? Logo descobriu que não, como ocorria com frequência em documentos do tipo. A família e alguns sócios brigavam pelos bens, mas os cativos continuaram na mesma situação.

O advogado, em início de carreira, decidiu acionar a Justiça para que a liberdade e a vontade do empresário fossem respeitadas. O processo judicial que se seguiu, conhecido nos jornais da época como "Questão Netto", é apontado por historiadores consultados pela BBC News Brasil como a maior ação coletiva de libertação de escravizados conhecida nas Américas. Por ora, não há registro de processo que envolva mais pessoas, segundo eles.

Páginas do processo, escritos a mão

Crédito, Reprodução

Legenda da foto, O historiador Bruno Rodrigues de Lima precisou decifrar as várias caligrafias do processo

Essa ação de Luiz Gama foi encontrada recentemente pelo historiador Bruno Rodrigues de Lima, doutorando em História e Teoria do Direito pelo Max Planck Institute, em Frankfurt, na Alemanha.

A peça de mais de mil páginas - toda escrita à mão - estava armazenada no Arquivo Nacional e não há registros de que ela tenha sido analisada em profundidade. "Não há grandes registros desse processo na historiografia sobre Luiz Gama. Encontrei citações nas décadas seguintes ao processo e uma uma nota de rodapé num livro dos anos 1990", diz Lima, que há mais de uma década pesquisa a vida e a obra do abolicionista.

Lima fez uma cópia do processo e a levou para a Alemanha, onde ou meses decifrando as várias caligrafias presentes no calhamaço. "Logo identifiquei a letra de Gama, que era de mais fácil leitura. Mas havia várias outras, como a de escrivães, promotores e juízes", explica.

A análise do processo agora fará parte da tese de doutorado que o historiador vai apresentar ao final deste ano sobre a obra jurídica do abolicionista. Além desse, a tese contará com dezenas de outros processos ainda desconhecidos, diz.

A 'Questão Netto'

Lima conta que o processo ou a correr em Santos, litoral sul de São Paulo, por causa de uma pendenga judicial do comendador Ferreira Netto com um sócio da cidade. Inicialmente, Luiz Gama se apresentou ao juiz da comarca apenas como um interessado no caso.

"Ele fez uma petição ao juiz de maneira bastante escorregadia, porque ele não era parte naquela briga judicial pela herança. Ele entra no processo como um cidadão que queria saber o que aconteceu com os escravizados. O juiz respondeu que eles precisavam de um representante", diz.

A princípio, Gama não foi nomeado "curador" dos interesses do grupo, mas, depois de outros cidadãos se recusarem a participar da ação, ele foi indicado pelo próprio juiz para assumir a tarefa.

O abolicionista não sabia quem estava representando de fato, mas mandou emissários para descobrir os nomes, idades e há quanto tempo pertenciam ao comendador.

Bruno Rodrigues de Lima

Crédito, Arquivo Pessoal

Legenda da foto, O historiador Bruno Rodrigues de Lima estuda a vida e a obra de Luiz Gama há mais de uma década

No total, havia 217 escravizados nas propriedades do fidalgo - gente de Angola, Moçambique, Congo, entre outras nações africanas. "Gama recebe informações com nome, idade, naturalidade, histórias de vida. Havia famílias inteiras nas fazendas", diz Lima.

Mas como garantir que o direito à liberdade, recém-conquistado com a morte do comendador, fosse garantido? Lima acredita que a "Questão Netto" tenha sido o primeiro grande processo de liberdade de Luiz Gama, que, na época, havia sido demitido de um cargo na polícia.

Quem era Luiz Gama?

Nascido em 1830 em Salvador, Luiz Gama teve de lidar com a escravidão desde cedo. Sua mãe era uma mulher negra e seu pai, um fidalgo de origem portuguesa.

Praça da Sé, final do século 19

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Legenda da foto, Luiz Gama atuou como advogado em São Paulo, onde trabalhou na polícia. A imagem mostra a praça da Sé

"A vida dele foi singular em todos os aspectos. Muitos historiadores acreditam que ele era filho de Luiza Mahin, uma guerreira que participou de várias revoltas negras na Bahia", diz Zulu Araújo, presidente da Fundação Pedro Calmon e ex-presidente da Fundação Palmares durante o governo Lula.

"Mas não há certeza de que Mahin era sua mãe mesmo ou se foi uma história inventada por Gama. O fato é que a mãe dele desapareceu, e ele foi criado pelo pai."

Aos 10 anos, Gama foi vendido pelo próprio pai a um contrabandista do Rio de Janeiro, que logo o reou a um fazendeiro paulista. O dinheiro da venda serviria para o pai saldar uma dívida de jogo. Na adolescência, ele foi escravizado, mas, com 18 anos, conseguiu provas de sua liberdade e fugiu do cativeiro.

Aprendeu a ler e escrever, foi poeta e trabalhou como jornalista, tipógrafo e escrivão de polícia, onde ou a lidar diariamente com a legislação. Autodidata, o jovem tentou cursar Direito na tradicional Faculdade do Largo São Francisco, mas foi rejeitado pela elite que comandava a instituição. Ele só ganharia o título oficial de advogado, dado pela OAB, em 2015, quando sua morte completou 133 anos.

"Gama era uma pessoa 'improvável' para a época, porque era negro e pobre. Ele aprende o Direito na prática, trabalhando na polícia e frequentando a biblioteca particular de Furtado de Mendonça, chefe da polícia e amigo que o protegia", explica Tâmis Parron, professor de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro do Commun (Núcleo de Estudos de História Comparada Mundial).

"A grande sacada dele foi perceber a centralidade do Direito na luta abolicionista e como estratégia para destruir a escravidão. O ativismo jurídico tinha sido muito importante para o abolicionismo na Inglaterra e nos Estados Unidos. Ele o trouxe para o Brasil. Gama percebeu que a própria legislação podia ser usada contra os senhores", diz Parron.

Estima-se que o advogado tenha conseguido libertar centenas de escravizados com ações na Justiça - há centenas de processos de liberdade com seu nome no arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo, material em boa parte desconhecido da historiografia. Muitas vezes, ele trabalhava de graça.

Mas como ele conseguia libertar tantas pessoas?

Primeiro, é preciso voltar um pouco no tempo. Em 7 de novembro de 1831, pressionado pela Inglaterra, o Império brasileiro assinou uma lei que proibia o tráfico de africanos ao Brasil. Ou seja, a partir daquele momento, qualquer africano trazido ao país deveria ser libertado imediatamente.

Processo

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Legenda da foto, O processo tem mais de mil página e está armazenado no Arquivo Nacional

Mas isso não aconteceu na prática. Embora embarcações inglesas patrulhassem a costa brasileira em busca de navios negreiros, o contrabando era bastante comum no país - essa discrepância entre o que estava na lei e a vida real fez com que a norma ganhasse o apelido de "lei para inglês ver".

Estima-se que mais de 700 mil africanos foram trazidos ilegalmente para o Brasil entre 1831 e 13 de maio de 1888, quando a escravidão foi finalmente abolida pela Lei Áurea. Em todo o período de escravidão, foram cerca cinco milhões de pessoas.

Luiz Gama ou a atuar em casos de pessoas contrabandeadas ao país depois dessa legislação. "Ele reunia provas para demonstrar que, se a pessoa tinha nascido na África e foi trazida ao Brasil depois de 1831, ela fatalmente foi traficada e sua condição de escravizada era ilegal. Esse foi um dos argumentos que ele utilizou para conseguir libertar centenas de pessoas", conta Bruno Lima.

Segundo Tâmis Parron, o tráfico negreiro ocorria com o consentimento e a participação do Império, que dependia da economia escravista. "Para existir e atuar, o crime organizado precisa da participação ou da anuência de alguma esfera da burocracia estatal", diz.

"O que Gama fez com seu ativismo foi escancarar que o Estado e o escravismo brasileiros, além de roubarem os direitos naturais e inalienáveis do homem, eram literalmente ladrões e criminosos, pois burlavam a lei que eles próprios criaram", completa Parron.

Escravos urbanos coletando água no Brasil da década de 1830

Crédito, Johann Moritz Rugendas/Slavery Images

Legenda da foto, Escravizados urbanos coletando água no Brasil da década de 1830

Liberdade, vidas perdidas

Luiz Gama apresentou uma tese jurídica bastante simples, porém inédita, para tentar ganhar a ação contra a família e os sócios do comendador Ferreira Netto, que queriam manter a propriedade de seus 217 cativos.

"Ele teve a sacada de usar a voz do senhor de escravos como argumento jurídico contra ele próprio. O testamento havia sido publicado em vida na imprensa. Então, a estratégia dele foi a seguinte: se o próprio comendador escreveu que gostaria que os escravizados fossem libertados, por que eles ainda não estavam livres");