Visões diferentes de Deus são origem de cisão entre evangélicos conservadores e progressistas no Brasil, diz pastor Ed Kivitz

Igreja Batista de Água Branca

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Legenda da foto, Com 56 anos, Kivitz é teólogo, escritor e pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo
  • Author, Mônica Vasconcelos
  • Role, Da BBC News Brasil em Londres

É uma das agens mais conhecidas da Bíblia. Mas contada pelo pastor batista Ed René Kivitz, com 31 anos de púlpito, a parábola da mulher flagrada em adultério soa atual e empolgante - uma história de apelo universal.

De um lado, os fariseus, doutores da lei, ciosos da aplicação da norma. Cometeu adultério? Deve ser apedrejada. De outro, Jesus, tentando ensinar aos homens o caminho da misericórdia e do amor.

Convidado a opinar, Jesus tinha de ser cuidadoso, explica Kivitz. "Se ele negasse o apedrejamento, seria acusado de ser um falso messias. Então, ele afirma. A lei manda apedrejar? Apedreje. Mas quem não tem pecado atire a primeira pedra."

Dois milênios mais tarde, a humanidade parece não ter perdido o impulso de apedrejar.

"O paralelo mais equivalente (ao apedrejamento) na cultura ocidental é o linchamento nas redes sociais e a chamada cultura do cancelamento", diz o pastor.

"Fui vítima disso, no meu próprio segmento religioso. Fui chamado de herege, de filho do diabo, de maldito."

A heresia cometida por ele?

"Fiz questionamentos no meu sermão sobre a importância de atualizarmos a Bíblia sagrada para o mundo contemporâneo. Isso foi suficiente para que as pessoas imaginassem que estou relativizando o valor da Bíblia e me condenassem."

Kivitz, de 56 anos, teólogo, escritor e pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo, não é o único a sofrer esse tipo de assédio.

"Muitos pastores progressistas sofrem isso", diz.

"Claro que também recebi incontáveis manifestações de apoio. Para mim, isso é evidência de que existe hoje (no segmento evangélico) no Brasil uma cisão entre o que podemos chamar de um movimento conservador fundamentalista, que aderiu ao bolsonarismo, e um movimento progressista."

Até recentemente, o pastor mantinha um perfil discreto e se dizia contente em simplesmente pregar a palavra de Cristo em sua igreja, cujo auditório tem capacidade para 2 mil pessoas.

Agora, diz, não dá mais para ficar em silêncio.

Falando à BBC News Brasil, Kivitz se posiciona sobre várias questões polêmicas envolvendo o movimento evangélico no país.

Sobre cultos presenciais durante a pandemia, ele diz:

"Desde março, meus sermões são virtuais. O critério de decisão para comportamento de igrejas não é político, econômico nem religioso. É sanitário, é medicina, é ciência."

Sobre o caso da menina de dez anos que engravidou após ser estuprada e cujo aborto foi condenado por grupos religiosos: "A justificativa para submeter essa menina ao aborto é a proteção de sua vida."

Sobre a promessa, pelo presidente Bolsonaro, de um ministro "terrivelmente evangélico" para o STF e referências a "orações" no início de cada sessão, o pastor declara:

"Essa apropriação de Deus, do nome de Deus, e dos símbolos, da lógica da religião para legitimar um projeto de poder político é uma apropriação indevida, de índole totalitária. Que conspira contra uma sociedade plural, contra um Estado democrático de direito."

Finalmente, listando o que, para ele, são falhas sérias do governo atual — o descaso para com a vida no cuidado com a pandemia, o aumento da violência e o descaso com o patrimônio natural do país — Ed René Kivitz diz:

"O apoio de um líder religioso cristão evangélico ao bolsonarismo é imoral."

Essa reportagem é fruto de uma série de entrevistas concedidas por Kivitz à BBC News Brasil ao longo de quase um ano.

Ela tenta capturar as ideias de um pastor cuja mensagem contrasta com quase tudo o que comumente se fala sobre os evangélicos no Brasil.

E explora, sob a ótica de Kivitz, um verdadeiro embate travado hoje no seio do movimento evangélico no país. De um lado, ele diz, as vozes da misericórdia e da compaixão. De outro, as vozes do dogma e da norma.

Pastor Ed Kivitz na Igreja Batista de Água Branca

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Legenda da foto, Pastor tem 31 anos de púlpito

Duas versões de Deus: o Deus amor e o Deus poder

Em suas entrevistas, o santista Ed René Kivitz tem falado em duas Igrejas e em duas versões de Deus ao longo da história: antes e depois do surgimento da figura de Jesus Cristo.

Entender melhor esses conceitos não interessa apenas a teólogos.

Essas duas versões de Deus estão no centro da disputa entre as chamadas alas conservadora e progressista da igreja evangélica. Em jogo está o título de verdadeiro porta-voz do Evangelho.

"Esse embate não é novo. Foi acirrado, mas existe desde sempre", explica Kivitz. E como ele propõe mais adiante, a briga tem profundas implicações políticas.

Mas primeiro, o que Kivitz quer dizer quando fala em duas versões de Deus?

"Existe uma grande mudança de paradigma a partir da chegada de Jesus", diz Kivitz.

"No Velho Testamento, Deus é percebido como um poder a ser temido. Ele lhe deu vida e exige que você preste contas e viva responsavelmente, sob pena de sofrer seu juízo. Deus pode tirar a sua vida, exterminar seu povo e fazer o que bem entender sem dar explicações porque ele é Deus. Então, tenha temor de Deus, viva no temor do Senhor."

"Já a fé cristã diz que Deus é amor. Deus não é um poder a ser temido, é um pai amoroso, com quem a gente se relaciona numa outra perspectiva."

Nesse ponto, Kivitz cita as ideias do teólogo católico François Varillon, para quem Deus não é um poder que ama mas, sim, um amor todo-poderoso.

"Deus não pode tudo, ele só pode o que o amor pode. E o máximo que o amor pode é sacrificar-se pelo objeto do seu amor", explica Kivitz. "Por isso, Jesus é um Deus que morre por amor. Porque Deus é amor."

"Você não precisa ter medo de Deus. Deus não está contra você."

"Julgamento, condenação, apedrejamento de pecadores e conceitos como homofobia, xenofobia, racismo, são incompatíveis com o caráter do Deus revelado por Jesus."

Segundo essa lógica, Cristo amaria os homossexuais? Cristo amaria a mulher que fez um aborto?

"Cristo ama todas as pessoas indistintamente e independentemente de sua condição existencial, do seu gênero e inclusive de suas transgressões, quaisquer que sejam elas", responde.

Vejamos, agora, como esses dois conceitos de Deus embasam o pensamento de Kivitz em relação ao aborto e à disciplina, temas que vêm gerando bastante controvérsia no Brasil nos últimos meses.

Igreja Batista de Água Branca

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Legenda da foto, Para pastor, vozes da misericórdia travam embate com vozes do dogma no seio do movimento, com sérias implicações politicas

A norma religiosa, a misericórdia divina e o aborto

Recentemente, o caso de uma menina de dez anos que ficou grávida após sofrer quatro anos de estupros por um tio chocou a opinião pública no Brasil. Correndo perigo de vida, a menina foi submetida a um aborto por recomendação médica e com autorização judicial.

No entanto, o procedimento foi criticado por membros de grupos religiosos, entre eles, evangélicos. Reunidos na porta do hospital, manifestantes chamaram o médico de assassino e tentaram impedir a entrada da criança e de sua família no prédio. Entre os manifestantes estavam políticos da chamada bancada evangélica.

Kivitz classifica o episódio de vergonhoso e revoltante.

"O que foi feito com ela (a criança) foi uma crueldade, tanto o abuso que ela sofreu, que gerou sua gestação, quanto o julgamento e o linchamento moral do seu aborto."

"Esta é uma criança que deveria ser protegida em vez de se exigir dela uma conduta moral de perspectiva religiosa."

O pastor esclarece sua posição em relação ao aborto: "O aborto é pecado, ponto final".

Por outro lado, pondera, não praticar o aborto nessa menina significava expor a criança ao risco de morte.

"Os legalistas vão dizer, paciência. Afirmar o absoluto do dogma e da norma é mais importante."

"Mas aqueles que optam por um caminho de misericórdia vão dizer, não, vamos optar pela preservação da vida dessa menina."

Então, o aborto dessa menina era justificável, diz.

"A gravidez quando é resultante de um estupro, uma violência, não só contra uma menina, mas contra uma mulher em condição de gerar filhos, coloca uma mulher num sofrimento tal que não lhe é possível dar a resposta ideal à sua situação. Não é que ela não quer, não está a fim, não é o momento. Ela não tem condição emocional, psíquica, espiritual, diante da violência sofrida."

Nós não somos pessoas ideais vivendo em um mundo ideal, diz Kivitz.

"Portanto, não se pode exigir — sem se tornar cruel — perfectibilidade do ser humano. Por isso, Jesus não é um legislador e um juiz. Jesus é um comivo, misericordioso, amoroso. Que compreende a angústia da condição humana."

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Legenda da foto, 'Essa apropriação de Deus, do nome de Deus, e dos símbolos, e da lógica da religião para legitimar um projeto de poder político é uma apropriação indevida, de índole totalitária', diz pastor

'Chicote' e 'dor' em prol da 'disciplina'

A noção de um Deus amoroso também fundamenta os argumentos de Kivitz ao refutar comentários de pastores evangélicos que defendem o uso do "chicote" e da "dor" como meios legítimos de se alcançar a "disciplina".

Entre esses pastores está o deputado Marco Feliciano (Podemos-SP). Em entrevista à BBC News Brasil no ano ado, Feliciano disse: "É cristão você pegar um chicote e espancar as pessoas? Jesus fez isso no momento oportuno, quando necessário. A disciplina, às vezes, é preciso vir".

A declaração é uma referência ao episódio narrado no Novo Testamento em que Jesus expulsou os vendilhões (comerciantes) do Templo de Jerusalém.

Kivitz discorda da interpretação que o deputado faz da agem bíblica.

"O fato ao qual ele (Feliciano) se refere é Jesus expulsando vendilhões do templo. Jesus derruba as bancas onde estavam sendo comercializados os produtos."

"Jesus não chicoteou pessoas, o texto bíblico não diz isso."

"Se ele não condenou uma mulher sendo flagrada em adultério, não condenaria nem chicotearia aqueles que estavam fazendo da religião um comércio."

A agressão às pessoas nunca é a resposta cristã, diz.

"Não é issível que o mesmo Jesus que nos ensinou a virar a outra face a quem nos agride tenha saído distribuindo tapas e chicotadas em pessoas."

Educação e disciplina 2 mil anos atrás

Kivitz vai além da esfera da religião quando se posiciona em relação a declarações do novo ministro da Educação de Jair Bolsonaro, o teólogo, advogado, professor e pastor da Igreja Presbiteriana Milton Ribeiro, defendendo o uso da dor na educação da criança.

Na ocasião da nomeação do ministro, em julho, a descoberta de um vídeo gravado em 2016 em que ele defende, durante um sermão, o uso da dor na educação da criança teve forte repercussão na mídia.

"Ninguém ensina a criança a ser egoísta, a morder o coleguinha. Isso está na natureza.

Só existe uma maneira. A vara da disciplina. (...)

A cura não vai ser obtida por meios justos e métodos suaves. Deve haver rigor, severidade. Deve sentir dor", disse Ribeiro à sua congregação.

Kivitz comenta que as referências bíblicas citadas no sermão de Ribeiro têm milhares de anos. Fazer sua transposição de forma literal implica ignorar a evolução do pensamento humano ao longo da história, argumenta.

Por exemplo, a evolução do sistema legal.

"Violar a integridade física de alguém é crime", diz. "Por que posso agredir uma criança e não é crime, é disciplina");