'Orfeu Negro': a vez que o Brasil 'ganhou' o Oscar, mas não levou

Breno Mello e Marpessa Dawn em cena de Orfeu Negro

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Breno Mello e Marpessa Dawn em cena de Orfeu Negro
  • Author, Edison Veiga
  • Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil

O filme se a no Rio de Janeiro. A história é em português brasileiro. As músicas são de Tom Jobim (1927-1994), Luiz Bonfá (1922-2001), Vinicius de Moraes (1913-1980) e Antônio Maria (1921-1964). A produção também é brasileira — mas não só; oficialmente o filme é ítalo-franco-brasileiro.

Quando se diz que o Brasil, até o prêmio deste domingo (2/3) para Ainda Estou Aqui, nunca havia ganhado, é preciso explicar a história desse grande sucesso internacional chamado Orfeu Negro.

Ele ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro de 1960 (categoria hoje chamada de melhor filme internacional). Mas o prêmio foi para a França.

Isso porque a principal produtora foi a sa Dispat Films, em participação maior do que a italiana Gemma Cinematografica e do que a brasileira Tupan Filmes. O produtor responsável foi Sacha Gordine (1910-1968), francês de origem russa.

Mas e o Brasil?

A seguir, explicamos essa história.

Cartaz do filme Orfeu Negro

Crédito, Wikimedia Commons/ Creative Commons

Legenda da foto, França ganhou Oscar de melhor filme estrangeiro por Orfeu Negro

"O filme Orfeu Negro [...] foi rodado inteiramente no Rio de Janeiro, com quase que a totalidade do elenco sendo brasileira, falado em português, com música brasileira e, sobretudo, inspirado em uma peça do Vinicius de Moraes, que é um brasileiro bem conhecido também... e esses brasileiros foram, sim, creditados no filme", diz à BBC News Brasil o produtor de cinema Cao Quintas, professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

Pule Whatsapp e continue lendo
No WhatsApp

Agora você pode receber as notícias da BBC News Brasil no seu celular

Clique para se inscrever

Fim do Whatsapp

Quintas diz, ainda, que "essa discussão é extremamente apropriada no momento, não só pela euforia da indicação brasileira ao Oscar agora [o filme 'Ainda Estou Aqui' recebeu três indicações, recorde na história do cinema brasileiro], mas pela discussão sobre regulamentação do streaming no Brasil, que precisa ar por uma definição do que é uma obra cinematográfica brasileira".

O professor explica que "em relação a coproduções", "normalmente o coprodutor majoritário indica o produtor delegado do filme, que a a ser responsável por qualquer aspecto ligado à obra".

Nesse caso, conforme fica claro nos créditos de abertura, Sacha Gordine é o delegado. "E a França foi o país responsável por indicar o filme para concorrer ao Oscar. Nessa modalidade [filme estrangeiro], os filmes são indicados pelos respectivos países de origem", esclarece.

De acordo com o regulamento da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos, que confere o prêmio, é nomeado como responsável por cada filme aquele que responder pela produtora com maior participação no trabalho —no caso de Orfeu Negro, a companhia sa. Isto justifica o fato de que quem inscreveu o filme na competição foi a Dispat Films.

Um caso semelhante que ilustra essa situação foi com o filme O Beijo da Mulher Aranha, de 1985. Dirigido pelo argentino naturalizado brasileiro Hector Babenco (1946-2016), com elenco internacional e falado em inglês, a obra sempre foi considerada mais americana do que brasileira. A coprodução entre os dois países foi indicada ao Oscar de melhor filme de 1986, sendo considerada uma candidata dos Estados Unidos. Não levou.

O dia em que Vinicius de Moraes ressignificou a mitologia grega

"O que posso dizer é que Orfeu Negro é uma das obras mais importantes do Vinicius, e que a França não tem vergonha de ter pegado isso pra ela", afirma à BBC News Brasil o roteirista de cinema Lusa Silvestre.

Tom Jobim

Crédito, Arquivo Nacional

Legenda da foto, Trilha sonora do filme inclui músicas de Tom Jobim

Em 1954, o poeta Vinicius de Moraes escreveu uma peça chamada Orfeu da Conceição. Baseou-se no drama de Orfeu e Eurídice, da mitologia grega. Na releitura brasileira, a história clássica foi ambientada em uma favela carioca.

O espetáculo tinha requintes históricos — marcou o início da genial parceria musical de Vinicius com Tom Jobim, que musicou todo o espetáculo.

A peça entrou em cartaz em 1956, no Teatro Municipal do Rio.

A cenografia foi assinada pelo arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012). A encenação ficou a cargo do Teatro Experimental do Negro de Abdias Nascimento (1914-2011) — foi a segunda vez na história que um elenco de atores negros protagonizou uma peça no elitista Municipal carioca.

O enredo grego do amor trágico entre Orfeu e Eurídice foi transposto para um feriado de carnaval. Os sentimentos presentes na trama original seguem na releitura poética-dramatúrgica de Vinicius: tem ciúmes, tem sangue, tem vingança. Tem amor e tem morte.

Havia um Brasil modelo exportação nessa história, mesmo que não fosse essa a intenção de Vinicius. Favela, samba, negritude, Rio de Janeiro, carnaval: ingredientes considerados interessantes e cinematográficos.

Vinícius de Moraes

Crédito, Arquivo Nacional

Legenda da foto, História foi baseada em peça de teatro escrita por Vinicius de Moraes

O diretor de cinema e escritor francês Marcel Camus (1912-1980) encarou a oportunidade.

Orfeu Negro saiu em filme em 1959. Foi adaptado da peça de Vinicius, escrito por Camus e Jacques Viot (1898-1973) em parceria com Vinicius, embora o brasileiro não tenha sido creditado — e dirigido por Camus.

A trilha sonora foi assinada oficialmente por Tom Jobim e Luiz Bonfá. Vinicius e Antônio Maria tiveram músicas de sua lavra incluídas, mas não receberam os créditos. O elenco teve atores brasileiros, como o protagonista Orfeu, vivido por Breno Mello (1931-2008). Eurídice foi encarnada pela americana Marpessa Dawn (1934-2008).

No filme, também há participações até de Tião Macalé (1926-1993) e Cartola (1908-1980).

Foi um sucesso retumbante. A ponto de o ex-presidente americano Barack Obama citar a obra em seu livro de memórias Dreams From My Father. Ou do artista plástico Jean-Michel Basquiat (1960-1988) lembrar da obra como uma de suas primeiras influências.

Orfeu Negro ganhou a Palma de Ouro em Cannes, além das categorias de filmes estrangeiros do Globo de Ouro e do Oscar.

Mas isso não significa que o Brasil já tem Oscar. Todos os louros foram contabilizados para a França, que detinha o maior controle da produção.

França ou Brasil?

Em 1959, o cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard (1930-2022) escreveu um artigo sobre Orfeu Negro para a revista sa Cahiers Du Cinema, no qual menciona: "Estou muito surpreso e muito desapontado porque eu não vejo nada do Rio em Orfeu Negro".

E Quintas, hoje, concorda: "Eu não me convenço que Orfeu Negro seja um filme brasileiro", diz. "Ou que retrate com propriedade um Brasil existente. Simples assim."

"Pelo contrário. Ele praticamente se apropria de um Brasil imaginário, [é] um neocolonialismo que filma essa alegoria e oferece essa sandice para o mundo ver", afirma Quintas. "É um filme que não fala de um Brasil real, exibe somente aquele Brasil exótico que o estrangeiro quer ver, aquele Brasil do imaginário coletivo global."

À BBC News Brasil, o cineasta Luiz Bolognesi diz: "Não sejamos ufanistas. Trata-se de uma produção sa com um diretor francês. Então o Oscar é da França."

Ele reconhece, contudo, uma problematização na maneira como os brasileiros foram creditados.

"O que a gente sabe é que a coprodução brasileira foi tratada de modo que hoje não seria. Foi escondida. Hoje essa participação seria muito mais evidente", comenta.

Essa problematização não parecia ser relevante na época em que o filme foi lançado.

Em pelo menos duas críticas publicadas no jornal francês Le Monde sobre o filme, ambas de 1959, o escritor Jean de Baroncelli (1914-1998) classificou a obra como "sucesso francês". Embora reconhecesse que a história se ava no Rio, era inspirada em criação do brasileiro Vinicius de Moraes e embalada pela bossa nova, enfatizava que os méritos criativos dessa transposição para a tela eram do diretor francês Camus.

"De um ponto de vista mais estritamente cinematográfico, é apropriado sublinhar os méritos de Marcel Camus, que, em condições materiais muitas vezes difíceis, foi capaz de produzir o mais deslumbrante dos filmes de espetáculo sem nunca ceder à vulgaridade turística ou às convenções comerciais", escreveu Baroncelli, em texto publicado em junho daquele ano.

Para a cineasta Lina Chamie, o resultado da premiação é resultado de um "raciocínio técnico".

"O Oscar, quem sobe lá para receber [os de melhor filme] não é exatamente o ator, o diretor. Sobem os produtores. E, nesse caso, embora tenha sido coprodução, a França foi a produtora inicial", disse à BBC News Brasil.

Chamie exemplifica com a hipótese de a sua produtora, a Girafa Filmes, de São Paulo, resolvendo fazer um filme sobre a guerra russo-ucraniana, rodado na Ucrânia.

"Para isso, eu buscaria um parceiro coprodutor na Ucrânia e outro, vamos dizer, na França. Imaginemos que o filme seja evidentemente falado na língua local, o ucraniano, com atores locais", diz.

"Nesse caso, o produtor local ucraniano é muito importante, mas de quem é o filme? O filme é rodado na Ucrânia, em ucraniano, com uma história ucraniana", contextualiza ela. "Mas é um filme brasileiro, mesmo que seja só com atores ucranianos. Para efeito de indicações, o que conta é o produtor que iniciou o processo, a produtora proponente."

'Apropriação'?

Bolognesi, contudo, lembra que há outro elemento que precisa ser considerado a essa discussão. Trata-se de um elemento contemporâneo, que muitas vezes vem sintetizado na expressão "lugar de fala".

"É uma história brasileira. Aí é que o bicho pega", diz ele. "Para onde vai o Oscar é o de menos. A regra diz que é para a produção e só um país pode levar. Isso me parece inquestionável, que esse Oscar, pelas regras do Oscar, pertence à França. Mas a questão é: que direito temos de contar histórias de terceiros? Onde começa a ser uma apropriação dessa narrativa");