Quem escreveu a Bíblia?

Crédito, Getty Images
- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Para os católicos, são 73 livros. Para os protestantes, 66. A Igreja Ortodoxa considera 78. E os judeus apenas 39, da parte conhecida como Antigo Testamento pelos cristãos.
Estamos falando do maior best-seller da história da humanidade, a Bíblia Sagrada, um compilado de textos com tradução para quase 3 mil idiomas — e, segundo estimativas da Sociedade Bíblica do Brasil, com mais de 3,9 bilhões de exemplares já vendidos no mundo.
Mas quem foram os autores que escreveram esses textos? Considerando que são documentos muito antigos, anteriores inclusive à noção contemporânea de autoria, é difícil cravar com precisão.
O ponto de partida para esta discussão é delimitar se o debate se restringirá a critérios religiosos ou partirá de princípios acadêmicos e científicos.
"É uma temática bastante espinhosa porque há duas visões. Prevalece ainda uma visão até certo ponto romantizada porque temos um tipo de teologia que é muito eclesial, com a pessoa estudando teologia porque quer ser pastor dentro de uma determinada comunidade, uma visão tradicional", analisa o teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Segundo ele, a teologia voltada para o sacerdócio precisa "garantir que o texto é inspirado, ou seja, é dito pelo próprio Deus, através do Espírito Santo".
"Por outro lado, uma teologia acadêmica não está preocupada com isso e procura analisar o aparecimento desses documentos dentro do tempo histórico", pontua.
Neste sentido, podemos entender os primeiros livros da Bíblia, aqueles que compõem o chamado Pentateuco ou a Torá judaica, como um compilado de textos que começaram a ser escritos por volta de 1 mil anos antes da era Cristã.
São eles: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio — os textos que narram desde a criação do mundo até a morte de Moisés.

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Torá
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Pela tradição religiosa, estes cinco livros teriam sido escritos por um único homem, Moisés.
"Lendo e interagindo com o [poeta e tradutor] Haroldo de Campos (1929-2003), eu aprendi que há duas abordagens possíveis. A da sinagoga diz que quem escreveu a Torá foi Moisés e ponto final. A gente trata como se estivesse 'ouvindo' Moisés toda semana [com as leituras], e isso tem um valor moral dentro da comunidade", afirma o estudioso José Luiz Goldfarb, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e diretor de cultura judaica do clube A Hebraica.
O viés científico, contudo, descarta a ideia de uma autoria única para estes livros.
"Do ponto de vista do estudo bíblico, estamos falando de mais de 600 anos de redação", contextualiza Goldfarb.
"Esta é a conclusão de análises do próprio Haroldo em cima de pesquisas bíblicas, arqueológicas, filológicas e poéticas."
Ele conta que uma análise minuciosa dos documentos permite agrupá-los pelo estilo, pelo vocabulário e pelas concepções em blocos associados a diferentes redatores em diferentes momentos históricos.
É uma ideia bem aceita.
"Sobre épocas e autores é muito complicado falar porque isso se perde no tempo. Investigações acadêmicas concluem que esses textos têm de 2,7 mil a 3 mil anos e, eventualmente, mais do que isso, já que eram transmitidos de maneira oral", diz o rabino Uri Lam, da congregação israelita Templo Beth-El, de São Paulo.
Segundo ele, estes textos foram canonizados — ou seja, reunidos e considerados integrantes da Bíblia hebraica — por volta do século 4 a.C.
"Mas mesmo aí há muitas discussões, e não dá para fechar o assunto", ite Lam.
Goldfarb vê uma vantagem neste aspecto coletivo e tão extenso de sedimentação dos textos.
"Se são 600 anos de escrita, isso é bom para quem gosta do mundo interpretativo. Quantas pessoas podem ter mexido no texto, criado pedaços em uma região, pedaços em outra"Apresentação da Torá em pintura do século 19 " loading="lazy" width="518" height="800" style="aspect-ratio:518 / 800" class="bbc-139onq"/>
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Quem era esse Marcos? O teólogo aponta para indícios de que era um seguidor do apóstolo Pedro.
"Mas outros vão dizer que era discípulo de Paulo. De qualquer forma, o que sabemos é que não foi um apóstolo de Jesus, direto", observa.
O evangelho de João também suscita dúvidas. Isto porque o texto fala em um "discípulo amado", e a tradição diz que este era João.
"Mas há teólogos que afirmam que talvez seja Lázaro, porque no evangelho há uma pista [na narrativa da morte de Lázaro] que diz que Jesus chorou 'e veja como ele o amava'", afirma Moraes.
Só no segundo século é que os cristãos am a atribuir a autoria deste texto a João.
"A tradição consagrou, e até hoje chamamos de João. Mas não é fácil saber quem escreveu, talvez até tenha sido uma obra coletiva", diz Moraes.
Para o teólogo, o melhor é assumir a ideia de que se trata de "evangelhos segundo" cada um destes nomes, em vez de encará-los como autores, no sentido contemporâneo do termo.
Cartas
Mas se o assunto é o Novo Testamento, é preciso ressaltar o papel de Paulo, o apóstolo que escreveu diversas cartas para as primeiras comunidades cristãs.
"As cartas de Paulo, como o nome já evidencia, [foram escritas] por Paulo e seguidores de Paulo. A carta a Timóteo, por exemplo, muito provavelmente é posterior a Paulo, por isso é considerada por alguns estudiosos como sendo deuteropaulina", afirma Medeiros.
"Há, porém, controvérsias em relação às cartas atribuídas a Pedro que, ao que tudo indica, não foram escritas diretamente por ele. E a de Paulo aos Hebreus, que muito provavelmente foi completada por um de seus discípulos."
Entende-se que Paulo tenha sido o primeiro a escrever sobre Jesus, a partir do ano 57 ou 58.
"A grande questão é saber se ele tinha consciência de que estava escrevendo um texto sagrado. Provavelmente, não", avalia Moraes.
"Ele estava usando de um recurso para se comunicar com igrejas e deixa suas epístolas. Algumas se perderam, algumas que hoje chamamos de suas epístolas podem ter sido escritas por discípulos dele, mas fazem parte de um círculo paulino."
"Quando falamos das cartas de Pedro, muito provavelmente é do círculo petrino, até porque Pedro não sabia escrever, e ele deixa isso claro em sua [primeira] carta. Ele usa um redator para escrever. Provavelmente ditou a um auxiliar, chamado Silvano", explica o teólogo.
Essa reportagem foi publicada em 25 de setembro de 2022