'Hoje começamos a cortar os mortos para comê-los': as cartas que revelam a tragédia do avião que caiu nos Andes

Crédito, Netflix
- Author, Felipe Llambías
- Role, BBC News Mundo
"Hoje começamos a cortar os mortos para comê-los, não temos outra solução."
Gustavo Nicolich — Coco, para os amigos — era um jovem uruguaio de 20 anos que pretendia participar com sua equipe de uma partida de rugby no Chile. Mas foi nas páginas de um caderno de aviação que ele registrou o que realmente aconteceu — algo que se tornaria uma façanha de sobrevivência humana que comoveria o mundo.
Oito dias antes que Nicolich escrevesse esse relato, em 13 de outubro de 1972, o avião Fairchild da Força Aérea Uruguaia que o levava para Santiago do Chile colidiu com uma montanha nas neves da cordilheira dos Andes.
O avião se partiu em dois. Alguns dos ageiros morreram ao serem lançados da aeronave, outros durante o impacto contra a parte dianteira do avião, que aterrissou em um vale a 3,5 mil metros de altitude.
Para os sobreviventes, ali começava uma impiedosa jornada de 72 dias, isolados de tudo, sob temperaturas baixíssimas durante o dia e ináveis à noite, quase sem suprimentos para sua sobrevivência.
O avião decolou da capital uruguaia, Montevidéu, com 40 ageiros (a maioria, jogadores de rugby, seus amigos e familiares) e cinco tripulantes. Mas apenas 16 deles voltaram para contar a história.
Coco Nicolich registrou de próprio punho o horror que eles enfrentaram, incluindo a antropofagia. Eles foram obrigados a se alimentar dos corpos dos ageiros mortos para continuar vivos.
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Crédito, Arquivo pessoal
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"De minha parte, pedi a Deus que, dentro do possível, este dia nunca chegasse", contou ele. "Mas chegou e precisamos enfrentá-lo com valentia e fé."
"Fé porque cheguei à conclusão de que os corpos estão ali porque Deus os colocou e, como a única coisa que interessa é a alma, não tenho por que ter muitos remorsos."
"E, se chegasse um dia e eu, com meu corpo, pudesse salvar alguém, eu o faria com gosto", prosseguiu ele.
Os sobreviventes formaram um grupo que recebeu o nome de "sociedade da neve" – uma forma de vida isolada do mundo conhecido, com outras regras, estabelecidas para a sobrevivência em um conceito mais do que extremo. Uma contingência que ninguém poderia ter imaginado.
A "sociedade da neve" deu o nome a um documentário do cineasta uruguaio Gonzalo Arijón. E também já havia sido o título de um livro de autoria de Pablo Vierci, também uruguaio, publicado em 2008. Vierci conhecia muitos dos protagonistas do episódio desde seus tempos de escola.
Foi com base nesse livro que o diretor espanhol Juan Antonio Bayona dirigiu o filme A Sociedade da Neve, que estreou na segunda semana de dezembro na América Latina e na Espanha. O filme estará disponível na Netflix em janeiro.
O documentário foi indicado para o Globo de Ouro 2024 de melhor filme em língua não inglesa e é o representante espanhol na disputa pelo Oscar.

Crédito, Getty Images
O cenário e o entorno
Coco Nicolich fazia parte de um grupo de jogadores de rugby amador do clube Old Christians. A equipe era formada por ex-alunos do colégio católico Stella Maris, de Montevidéu, fundado pela Congregação dos Irmãos Cristãos.
A equipe viajava com amigos e familiares para disputar uma partida amistosa contra o clube chileno Old Boys.
Nicolich gostava de escrever. Por isso, ele decidiu relatar o que estava vivendo em duas cartas, uma destinada aos seus pais, seus três irmãos e sua namorada e a outra, exclusivamente para a namorada.
Sua narração suavizava alguns aspectos do que eles estavam vivendo, especialmente no princípio da primeira carta.
"Estamos em um lugar divino, todo rodeado por montanhas e com um lago ao fundo que irá descongelar assim que começar o degelo", contou ele. "Estamos todos muito bem."
Mas, das 45 pessoas a bordo do voo 571, 18 já estavam mortas naquele dia.
Era 21 de outubro de 1972. Eles ainda não haviam começado a se alimentar dos corpos das pessoas mortas. Enquanto isso, na sua casa em Montevidéu, a família de Coco ainda colocava um prato na mesa para ele, na hora de comer.
"O moral existente é incrível e há colaboração permanente entre todos. Roy [Harley], Diego [Storm], Roberto [Canessa], Carlitos [Páez] e eu estamos perfeitamente bem, apenas um pouco mais fracos e barbudos", dizia Nicolich.

Crédito, Museu Andes 1972
"No domingo ado, aram por cima de nós dois aviões, duas vezes cada um. Por isso, estamos muito tranquilos e, acima de tudo, convencidos de que virão nos buscar. A única coisa que nos faz duvidar um pouco é que, como o avião se desviou da rota, quem sabe se ainda nos viram."
"Nossa fé em Deus é incrível (pode-se dizer que é comum em certos casos como este), mas acredito que seja muito maior", segundo ele.
Nicolich mencionou o desvio do avião porque, como as condições climáticas não eram boas naquele dia, o piloto e o copiloto decidiram não cruzar a cordilheira diretamente em direção a Santiago, mas sim ir primeiramente para o sul, até um lugar onde o trajeto era mais seguro, para dali atravessar a cordilheira.
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