As seitas cristãs da antiguidade em que mulheres podiam ser 'padres'
- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Apesar de representarem um contingente muito significativo entre os fiéis, historicamente o papel das mulheres na Igreja Católica sempre foi relegado a um segundo plano — as funções sacerdotais, por exemplo, só podem ser exercidas por homens.
Recentemente, é uma discussão latente e especialistas acreditam que, mesmo que provavelmente não nesse pontificado, seja uma questão de tempo até que elas sejam autorizadas a exercer papéis mais importantes dentro da hierarquia religiosa.
Divulgado no fim de outubro, o documento final da assembleia ordinária do Sínodo dos Bispos, realizada no Vaticano em outubro ado, mais uma vez trouxe à tona a participação feminina dentro da Igreja.
Entre os parágrafos do texto, o que teve menor consenso foi justamente o que dizia que a instituição deve considerar o diaconato feminino, restaurando "uma prática da Igreja das origens".
De acordo com as regras do Sínodo, todos os pontos do relatório final precisam de aprovação da maioria dos participantes. Este teve o maior número de votos contrários (69), frente a 277 favoráveis.
Um olhar para as comunidades dos primeiros cristãos permite entender que, nelas, realmente a participação feminina costumava ser maior, sobretudo antes de o cristianismo se tornar a religião oficial do Estado romano, sob o imperador Teodósio, no ano 380.
Mas nesse período histórico, quase 2 mil anos atrás, havia uma série de divergências teológicas, litúrgicas e organizacionais entre os diferentes grupos de seguidores de Jesus.
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E aí, segundo historiadores e teólogos contemporâneos, duas vertentes do cristianismo primitivo se destacam por essa variável: nelas, mulheres tinham papéis de igualdade com homens, a despeito da mentalidade patriarcal presente nas sociedades da época. Chegavam, inclusive a ocupar postos equivalentes ao de sacerdotes.
Essas vertentes são o marcionismo, estabelecido por Marcião de Sinope (85-160), e o montanismo, fundado por um teólogo que viveu provavelmente entre a segunda metade do primeiro século e a primeira do segundo, conhecido simplesmente como Montano.
Religiosa da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora, a freira Ivone Gebara, filósofa, teóloga e feminista, ressalta à BBC News Brasil que, ao olhar para esses movimentos, é preciso entender que inúmeros deles "destoam da tradição do catolicismo e do protestantismo clássico".
O marcionismo "colocava as mulheres em condição de igualdade com os homens, nomeando-as diaconisas, sacerdotisas e até bispas", pontua a cientista das religiões Ana Cândida Vieira Henriques, doutora pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em artigo acadêmico publicado em 2017.
No texto, intitulado "Sacerdócio Feminino: A Santa Sé Frente aos Desafios Contemporâneos", ela acrescenta que essa prerrogativa se dava pela característica "paulinista radical" do marcionismo.
Filho de um líder religioso considerado um bispo da cidade de Sinope, em uma província romana localizada onde hoje é a Turquia, Marcião começou sua carreira com assistente na equipe do pai.
Mergulhou nos estudos daqueles ainda incipientes textos cristãos e, aos poucos, começou a achar que a maneira como a religião estava se desenvolvendo não seria compatível aos ensinamentos de Jesus. Viveu em Roma entre os anos de 142 e 143 e, lá, desenvolveu seu sistema teológico e ou a atrair seguidores.
Entre seus pontos principais estava uma ruptura completa com o judaísmo. Ele não entendia o cristianismo como uma certa continuidade, mas como uma outra ideia religiosa.

Crédito, Domínio Público
Para Marcião, o Deus dos judeus não poderia ser o mesmo que o Deus dos cristãos, já que a mensagem contida nos textos hebraicos — hoje constantes do Antigo Testamento da Bíblia cristã — apresentam um ser superior raivoso e vingativo, enquanto Jesus anunciava um Deus amoroso e que sempre perdoava.
"Sua tese era que o Deus dos judeus, portanto aquele encontrado na bíblia judaica, não poderia ser o mesmo Deus de Jesus. O Deus dos judeus, para ele, era um deus étnico, sem equilíbrio, que desconhecia o amor. Um deus muito ruim", contextualiza à BBC News Brasil o historiador André Leonardo Chevitarese, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e um dos autores do livro Judaísmo, Cristianismo e Helenismo — Ensaios Acerca das Interações Culturais no Mediterrâneo Antigo.
"Mas o Deus de Jesus é aquele do amor, o Deus que quer congregar, pacífico, universal", compara ele.
Marcião foi o primeiro a se preocupar em organizar um cânone dos textos cristãos. Muitos lembram disso como um embrião do que viria a se tornar a Bíblia.
Em sua coletânea de escritos, contudo, ele descartou tudo o que lhe parecia contaminado pela tradição judaica.
Assim, incluiu apenas o Evangelho de Lucas, retirando todas as menções que lhe parecessem muito ligadas aos hebreus — ele entendia as referências aos profetas antigos e a Israel como interpolações que tinham sido inseridas a posteriori no texto original.
O religioso incluiu, de modo especial em sua coletânea, as cartas de Paulo. Na verdade, 10 delas, e não as 13 da Bíblia de hoje.
"O marcionismo foi um grupo radicalmente paulino, surgido por volta do ano 140. De acordo com Marcião, Paulo havia sido o único entre as grandes lideranças do cristianismo que havia entendido a radicalidade daquilo que era o teor mais fundamental da mensagem de Jesus", comenta à BBC News Brasil o teólogo e filósofo Pedro Lima Vasconcellos, professor na Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e ex-presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica.
Este ponto é muito importante porque lança luz sobre o entendimento que os adeptos dessa vertente aram a ter sobre a participação feminina.
Na literatura missivista produzida por Paulo de Tarso, autor daqueles que cronologicamente são considerados os textos mais antigos conhecidos a respeito de Jesus, há uma valorização feminina notável.
Na Bíblia, 13 cartas são atribuídas a Paulo, embora hoje muitos pesquisadores defendem que apenas sete seriam legitimamente de sua autoria — as demais teriam sido escritas por cristãos posteriores a ele, pois apresentam entendimentos discrepantes do que se sabe sobre a teologia Paulina.
Em uma dessas epístolas, a dirigida aos Gálatas, Paulo diz claramente que, depois do batismo em Cristo, não deve haver mais divisões, e todos devem ser tratados em igualdade, não importam as condições.
"Não há mais nem judeu nem grego, já não há mais nem escravo nem homem livre, já não há mais o homem e a mulher, pois todos vós sois um só em Jesus Cristo", afirma.
"Este texto patenteia isso [a igualdade entre homem e mulher] de maneira incisiva", analisa Vasconcellos.
Já na carta endereçada aos Romanos, o missionário saúda Júnia, uma mulher que seria, segundo o texto, parte do grupo de "apóstolos eminentes".
"Em Paulo, nós podemos vê-las [as mulheres] não só como ricas matronas que financiavam o movimento, mas como líderes e missionárias proeminentes. As mulheres foram determinantes para a extensão do movimento aos não-israelitas e em geral eram sempre os primeiros gentios a se converterem", explica a antropóloga Fabíola Rohden, professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em sua dissertação de mestrado "Feminismo no Sagrado", defendida em 1995 na UFRJ.
Assim, homens e mulheres eram tratados de forma igualitária, sem distinção, pelos seguidores do marcionismo.
"Por isso atribui-se a essas igrejas o reconhecimento desse protagonismo feminino exercido em igualdade de condições com a liderança masculina, que também era exercida", pontua Vasconcellos.
"Isso deve ter sido resultante desse influxo Paulino poderoso que se deu nas igrejas marcionitas."
Segundo o teólogo, para Marcião "essa dicotomia entre homem e mulher perdia sua razão diante do que tinha sido a obra de Jesus".
"Os marcionitas enfatizavam a feminilidade como a esfera da criação, enquanto a masculinidade simbolizava a transcendência", explica Fabíola Rohden.
Chevitarese ressalta que a participação feminina era um dos pontos que, mais tarde, aram a ser considerados heréticos dentro da mensagem marcionita.
"O papel das mulheres, e elas tinham um protagonismo ali dentro, isso tudo vai gerando suspeição", argumenta ele.
"Era um momento de tentativa de dialogar com o império romano enquanto movimentos de Jesus sem Jesus, as hierarquias e as falocracias eram as normas. Como tratar um cara que, apesar de ser competente, coloca as mulheres em papéis elevados");