Por que é tão difícil decifrar o mistério genético do autismo

Crédito, Getty Images
- Author, David Cox
- Role, BBC Future
Até a década de 1970, a crença predominante na psiquiatria era de que o autismo era uma consequência da má criação dos pais.
Nos anos 1940, o psiquiatra austríaco Leo Kanner cunhou a controversa teoria da "mãe-geladeira", sugerindo que o autismo surgia de traumas na primeira infância, em decorrência de mães frias, indiferentes e que rejeitavam os filhos.
Daniel Geschwind, professor de neurociência e genética da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), nos EUA, diz que esta teoria é agora corretamente reconhecida como profundamente prejudicial e equivocada, mas foram necessárias quase três décadas para que a teoria de Kanner fosse desmascarada.
Somente em 1977, quando dois psiquiatras realizaram um estudo de referência demonstrando que o autismo geralmente ocorre em gêmeos idênticos, que começou a surgir um quadro mais matizado e preciso das origens do autismo.
Este estudo marcou a primeira vez que um componente genético do autismo foi identificado. Desde então, pesquisas mostraram que, quando um gêmeo idêntico é autista, a probabilidade de que o outro gêmeo também seja pode ser superior a 90%.
Enquanto isso, as chances de gêmeos fraternos do mesmo sexo compartilharem um diagnóstico de autismo são de cerca de 34%. Estes índices são substancialmente mais altos do que a taxa típica de ocorrência na população em geral, de cerca de 2,8%.
Atualmente, é amplamente aceito que há um forte componente genético no autismo. Mas os genes envolvidos e como sua expressão é influenciada por outros fatores estão apenas começando a ser desvendados.
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Mesmo após o estudo com gêmeos em 1977, seriam necessárias várias décadas para que todas as sutilezas da interação entre o autismo e o genoma humano se tornassem aparentes.
Entre dois indivíduos qualquer, a quantidade de variação genética é de cerca de 0,1%, o que significa que aproximadamente uma letra ou par de bases de cada 1.000 em seu DNA será diferente.
"Essas variações podem não ter efeito algum", diz Thomas Bourgeron, professor de neurociência do Instituto Pasteur em Paris. "Às vezes, elas têm um pequeno efeito e, às vezes, têm um efeito muito forte."
Atualmente, variações "superfortes" foram identificadas em até 20% de todos os casos de autismo, sendo que uma única mutação em um único gene é a principal responsável por gerar diferenças cruciais no neurodesenvolvimento.
O papel destas mutações em um único gene e como elas surgem é uma das áreas mais estudadas na pesquisa sobre autismo, pois, como explica Bourgeron, elas geralmente resultam em deficiências graves e limitantes.

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"Não é como o autismo que você vê nos filmes", adverte Bourgeron. "Se você nasce com uma destas mutações graves, há uma grande probabilidade de ter deficiência intelectual ou atraso motor [a capacidade de coordenar grupos musculares] ou encefalopatia epiléptica. Na maioria dos casos, isso tem um grande impacto na qualidade de vida das pessoas e de suas famílias."
Até o momento, os cientistas identificaram pelo menos 100 genes em que estas mutações podem ocorrer.
O próprio Bourgeron fez uma das primeiras descobertas em março de 2003, quando identificou duas mutações genéticas ligadas ao autismo. Cada uma delas afetava proteínas envolvidas na sinaptogênese, o processo de formação de conexões entre os neurônios no cérebro.
Foi um grande avanço, embora tenha tido pouca repercussão na mídia na época — Bourgeron lembra que o então presidente dos EUA, George W. Bush, havia declarado guerra ao Iraque pouco antes.
Mas mais descobertas estavam por vir, inclusive mutações no gene Shank3, que, segundo estimativas, ocorrem em menos de 1% das pessoas com autismo. Agora sabemos que algumas destas mutações são conhecidas como "variantes de novo", o que significa que elas ocorrem por acaso em um embrião em desenvolvimento e não estão presentes no DNA do sangue da mãe ou do pai. Geschwind descreve as variantes de novo como sendo semelhantes a um "raio", que é ao mesmo tempo inesperado e raro.
No entanto, em outros casos, estas mutações podem ter sido transmitidas por um dos genitores, mesmo que ambos aparentem ser neurotípicos, um fenômeno mais complexo que os pesquisadores só começaram a entender na última década.
"Você pode se perguntar: se uma criança autista herdou uma mutação genética rara de um dos pais, por que o pai ou a mãe não tem autismo também");