O episódio de 'Jornada nas Estrelas' que previu nos anos 1990 crise que EUA enfrenta hoje

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- Author, Christian Kriticos
- Role, BBC Culture
É fascinante observar as histórias de ficção futurista como visões, distópicas ou não, do que pode ser o futuro.
Mas as obras mais bem sucedidas conseguem sobreviver e atingir novos públicos, mesmo quando suas previsões forem comprovadamente erradas.
A guerra perpétua de 1984, de George Orwell, não aconteceu até o ano-título da obra. E as viagens interplanetárias de Stanley Kubrick em 2001: Uma Odisseia no Espaço não chegaram com o novo milênio.
Ainda assim, as duas histórias continuam sendo relevantes, décadas depois das suas datas previstas, graças à sua visão abrangente sobre temas de interesse permanente – do autoritarismo até a evolução humana.
Depois de sete décadas, com 13 filmes de longa metragem e 11 séries de TV, Star Trek – Jornada nas Estrelas inevitavelmente incluiu, na sua linha do tempo, previsões de eventos que não se confirmaram.
Na série clássica dos anos 1960, o vilão mais famoso de Jornada nas Estrelas – Khan – apresentou aos espectadores as Guerras Eugênicas, um conflito em massa que ocorreria nos anos 1990, causado por experimentos de engenharia genética humana.
Episódios posteriores das diversas versões da série previram tempos difíceis no futuro. No universo de Star Trek, a Terceira Guerra Mundial teve seu início em 2026 e foi seguida por uma era de "horror pós-atômico".

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Estas previsões apocalípticas são fundamentais para formar os antecedentes do universo da franquia. Elas delineiam o difícil caminho seguido pela humanidade até chegar ao ambiente idealista dos séculos 23 e 24, onde se am as ações principais de Jornada nas Estrelas.
As catástrofes previstas podem parecer exageradas, mas elas refletem uma verdade que pode justificar o apelo permanente da série: o sofrimento causado por graves erros pode, em algum momento, conduzir a humanidade para um futuro mais pacífico e igualitário.
Em Jornada nas Estrelas: Deep Space Nine, dos anos 1990, um dos maiores erros da humanidade atinge seu ápice justamente em 2024. Mas, ao contrário dos outros desastres globais previstos pela série, este erro está mais próximo de nós.
No momento em que começamos realmente o ano de 2024, ele permanece um desafio tão urgente quanto na época em que os episódios foram apresentados pela primeira vez.
Imperfeições do ado
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O desafio abordado pela série são as dificuldades enfrentadas pelas pessoas em situação de rua. E o erro da humanidade é se esquivar do problema, em vez de resolvê-lo.
A questão é abordada em um episódio dividido em duas partes, intitulado Past Tense (ado Imperfeito) – o 11º e o 12º da terceira temporada, apresentados em janeiro de 1995.
Nele, o protagonista da série – o comandante Benjamin Sisko – e seus colegas são acidentalmente transportados no tempo. Eles são levados da estação espacial Deep Space 9, no século 24, para São Francisco, na Califórnia (EUA), no ano de 2024.
Quando acordam do seu estado inconsciente após a viagem no tempo, Sisko e o oficial médico da Deep Space 9, Julian Bashir, são confundidos com pessoas sem-teto por policiais armados.
"Existe uma lei contra dormir na rua", dizem eles aos confusos viajantes do tempo.
Os policiais levam Sisko e Bashir para um local da cidade cercado por muros, conhecido como Distrito Santuário. Ficamos sabendo que aquele lugar foi projetado para separar as pessoas sem-teto e os desempregados do restante da sociedade.
"No início dos anos 2020, havia um lugar como este em cada cidade grande dos Estados Unidos", explica o comandante para Bashir.
Na série, Sisko é especialista na história do século 21. E, em pouco tempo, ele percebe o significado da sua data de chegada.
Ele recorda que o ódio em torno dos Distritos Santuário atinge um ponto crítico em 2024, resultando em "um dos distúrbios mais violentos da história americana".
O comandante explica que o levante "irá mudar a opinião pública contra os Santuários. Eles serão derrubados e os Estados Unidos finalmente irão começar a corrigir os problemas sociais que vinha enfrentando há mais de 100 anos."
A inspiração para os Distritos Santuário
A lição de história do século 21 abala o idealista Bashir.
O médico confessa que nunca quis aprender sobre aquele período porque ele acha "muito depressivo". Bashir pode servir de uma espécie de representante para o próprio desconforto do espectador ao confrontar a questão.
Este desconforto foi uma inspiração importante para os roteiristas do episódio. Eles acreditavam que os Estados Unidos dos meados dos anos 1990 não estavam enfrentando as dificuldades dos seus cidadãos em situação de rua.
Em uma produção que mostra os bastidores da série, incluída nos DVDs de Deep Space Nine, um dos seus produtores, Ira Steven Behr, relembra a visita que ele fez a Santa Mônica, na Califórnia (EUA), e que inspirou o episódio. Behr foi um dos roteiristas de ado Imperfeito.
"Era um belo dia", descreve Behr. Ele observou "pessoas sem-teto em toda parte" e como os turistas "andavam em meio às pessoas sem-teto como se fossem parte do cenário"
Levando a ideia ao extremo, Behr e outro roteirista, Robert Hewitt Wolfe, imaginaram como seria um futuro próximo no qual os sem-teto seriam totalmente ignorados.
Foi assim que surgiu a ideia dos Distritos Santuário.

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Para Stephen Pimpare, da Escola Carsey de Políticas Públicas, nos Estados Unidos, este conceito reflete a posição do governo americano em relação aos sem-teto nos anos 1990.
"Os Distritos Santuário são um meio de simplesmente retirar as pessoas sem-teto da visão do público", declarou ele à BBC. "Vemos isso em exemplos da mesma época em que os episódios foram escritos."
"Em São Francisco, por exemplo, quando Art Agnos era prefeito [entre 1988 e 1992], houve um grupo de pessoas sem-teto que formou um acampamento não autorizado ao lado da prefeitura. Ele recebeu o nome de Camp Agnos. O prefeito trouxe a polícia e o destruiu."
Pimpare menciona também as políticas de Rudy Giuliani, quando foi prefeito de Nova York nos anos 1990, como parte dessa política de remoção da população sem-teto da visão pública.
E tudo isso ocorreu poucos anos depois da , pelo então presidente Ronald Reagan (1911-2004), da Lei Stewart B. McKinney de Assistência aos Sem-Teto, que forneceu dinheiro do governo federal para programas dirigidos às pessoas em situação de rua.
Atualmente, os Distritos Santuário parecem ainda mais plausíveis para algumas das pessoas que trabalharam nos episódios de Deep Space Nine na década de 1990.
O designer gráfico Michael Okuda, envolvido nas produções da franquia desde os anos 1980, foi supervisor de arte de ado Imperfeito. Para ele, "parece que, às vésperas de 2024, esses Distritos Santuário poderiam facilmente estar nas manchetes desta noite".
Sua esposa, Denise Okuda, também trabalhou no departamento de arte de Deep Space Nine. E ela concorda.
Para ela, "nós claramente fracassamos no combate às condições que contribuem para a falta de moradia nas cidades americanas. O número de pessoas em situação de rua disparou desde que ado Imperfeito foi ao ar."
Em 1990, o Escritório do Censo dos Estados Unidos concluiu que havia 228.621 pessoas sem-teto no país. E, em 2023, o Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano dos EUA estimou que esse número havia aumentado para cerca de 653.100 pessoas.
No Brasil, existiam 281.472 pessoas em situação de rua em 2022, segundo estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do governo federal.
Mas reunir números precisos sobre a população sem-teto é incrivelmente difícil.
"Os dados sobre esta questão não são bons até hoje", explica Pimpare. "Eles eram ainda piores nos anos 1990. Por isso, é preciso considerar esses números com muita cautela."

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Mas Pimpare acredita que esta aparente tendência negativa tenha sido causada pelas políticas que buscam apenas esconder o problema, em vez de combater as suas causas.
"Você observa isso na retórica atual", observa ele. "Nós reclamamos por ver pessoas morando na rua e não contestamos as razões que impedem que eles consigam abrigo."
E esta atitude é demonstrada em ado Imperfeito.
Além dos Distritos Santuário, existe uma história secundária que envolve a alta sociedade de São Francisco. Em uma festa exclusiva, quando o tema dos Distritos Santuário é mencionado, uma das convidadas mostra desconhecimento da sua existência.
"Achei que eles tivessem deixado de fazer aquilo", diz ela. "Por que eles deixariam");