Gisèle Pelicot, a mulher que abalou as atitudes dos ses sobre o estupro

Gisèle Pelicot

Crédito, CHRISTOPHE SIMON/AFP via Getty Images

Legenda da foto, O julgamento dos acusados de estuprar Gisèle Pelicot já começou a mudar o debate sobre consentimento na França e em outros lugares
  • Author, Andrew Harding
  • Role, Correspondente da BBC News em Paris

Aviso: Esta reportagem contém descrições de abuso sexual.

Todas as manhãs, as filas começavam a se formar antes do amanhecer. Grupos de mulheres — sempre mulheres — permaneciam no frio de outono em uma calçada adjacente a um anel viário movimentado, do lado de fora do tribunal de vidro e concreto de Avignon, na França.

Elas vieram, dia após dia. Algumas traziam flores. Todas queriam estar a postos para aplaudir Gisèle Pelicot enquanto ela subia, determinada, os degraus e atravessava as portas de vidro. Algumas ousavam abordá-la.

Outras gritavam: "Estamos com você, Gisèle". Ou: "Seja valente".

A maioria permanecia no local, na esperança de conseguir um lugar na sala de escuta pública da corte, de onde poderiam assistir ao julgamento em uma tela de televisão.

Elas estavam lá para testemunhar a coragem de uma avó, sentada em silêncio no tribunal, cercada por dezenas de seus supostos estupradores.

"Eu me vejo nela", disse Isabelle Munier, de 54 anos.

"Um dos homens que está sendo julgado já foi meu amigo. É nojento."

"Ela se tornou uma representante do feminismo", acrescentou Sadjia Djimli, de 20 anos.

Mas essas mulheres também estavam ali por outros motivos.

Acima de tudo, ao que parece, elas estavam em busca de respostas. Enquanto a França digere as implicações de seu maior julgamento por estupro, que deve terminar nesta semana, fica claro que muitas mulheres sas — e não apenas as que estavam no tribunal em Avignon — estão refletindo sobre duas questões fundamentais.

Mulheres aplaudem Gisèle Pelicot do lado de fora do tribunal de Avignon

Crédito, CHRISTOPHE SIMON/AFP via Getty Images

Legenda da foto, Pelicot é recebida por mulheres do lado de fora do tribunal de Avignon

A primeira questão é visceral. O que isso pode dizer sobre os homens ses — alguns diriam todos os homens —, já que 50 deles, em um pequeno bairro rural, estavam aparentemente dispostos a aceitar um convite casual para fazer sexo com uma mulher desconhecida enquanto ela estava deitada, inconsciente, no quarto de um estranho?

A segunda questão é um desdobramento da primeira: até que ponto este julgamento vai ajudar a combater uma epidemia de violência sexual e de estupro facilitado por drogas, e a desafiar preconceitos e ignorância profundamente arraigados sobre vergonha e consentimento?

Simplificando, a posição corajosa de Gisèle Pelicot e sua determinação — como ela mesmo disse, de fazer com que a "vergonha troque de lado", da vítima para o estuprador— vão mudar alguma coisa?

Por trás das máscaras dos acusados

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Um julgamento longo cria seu próprio microclima e, nas últimas semanas, um estranho tipo de normalidade se desenvolveu dentro do Palais de Justice de Avignon.

Em meio às câmeras de TV e aos grupos de advogados, a visão de dezenas de supostos estupradores — com os rostos nem sempre escondidos por trás de máscaras — não provocava mais o choque que causava no início.

Os acusados eavam, batendo papo, fazendo piada, pegando café na máquina ou em uma cafeteria do outro lado da rua e, durante o julgamento, de alguma forma enfatizaram o argumento central de suas várias estratégias de defesa: que eram apenas caras normais, uma amostra representativa da sociedade sa, que estavam procurando uma aventura de "swing" online e se envolveram em algo inesperado.

"[Esse argumento] é a coisa mais chocante sobre este caso. É angustiante pensar sobre isso", diz Elsa Labouret, que trabalha para o grupo ativista francês Dare to be Feminist.

"Acho que a maioria das pessoas em relacionamentos de longo prazo com homens pensa em seu parceiro como alguém confiável. Mas agora há esse senso de identificação [com Gisèle Pelicot] para muitas mulheres. Tipo: 'Isso pode acontecer comigo'."

"Não se trata de gênios do crime", ela acrescenta. "Eles simplesmente entraram na internet. Portanto, é possível que coisas semelhantes estejam acontecendo em todos os lugares."

Esta é uma visão amplamente aceita, mas também amplamente contestada na França.

O Instituto de Políticas Públicas da França divulgou dados em 2024 mostrando que, em média, 86% das denúncias de abuso sexual e 94% das de estupro não foram processadas ou nunca foram levadas a julgamento, no período entre 2012 e 2021.

Labouret argumenta que a violência sexual acontece quando certos homens sabem que "podem sair impunes".

"E acho que este é um grande motivo pelo qual ela é tão desenfreada na França", ela completa.

'Nem monstros, nem homens comuns'

Durante os quatro meses de julgamento, ao final de cada intervalo no tribunal, os acusados se reuniam junto ao detector de metais antes de ar pela imprensa, em sua maioria jornalistas mulheres, que também aguardavam para entrar na sala. Lá dentro, um por um, os homens se revezavam para compartilhar seus relatos.

Um psiquiatra nomeado pelo tribunal, Laurent Layet, afirmou em depoimento que os acusados não eram "monstros", nem "homens comuns".

Alguns choraram. Outros confessaram. Mas a maioria ofereceu uma série de desculpas, com muitos afirmando que eram simplesmente "libertinos" — como dizem os ses —, satisfazendo as fantasias de um casal, e que não tinham como saber que Pelicot não havia consentido. Outros alegaram que Dominique Pelicot, o marido de Gisèle, os havia intimidado.

Dois dos acusados ​​no tribunal

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Os réus estão sendo chamados de Monsieur-Tout-Le-Monde (Senhor Todo Mundo, em tradução livre), porque representam, de uma maneira geral, um microcosmo da sociedade sa

Existem poucos padrões claros ou características compartilhadas entre os 51 homens em julgamento. Eles representam um amplo espectro da sociedade: três quartos têm filhos.

Metade é casada ou está em um relacionamento. Pouco mais de um quarto deles disse ter sofrido abuso ou estupro na infância.

Não há um fator comum perceptível relacionado à idade, emprego ou classe social.

As duas características que todos compartilham são o fato de serem homens — e de terem feito contato em um fórum de bate-papo online ilícito chamado Coco, conhecido por atender adeptos de swing, além de atrair pedófilos e traficantes de drogas.

De acordo com os promotores ses, o site, que foi fechado no início deste ano, foi citado em mais de 23 mil relatórios de atividades criminosas.

A BBC descobriu que 23 dos que estão sendo julgados — ou 45% — tinham condenações criminais prévias.

"Não existe um perfil típico de homens que cometem violência sexual", concluiu Labouret.

Uma pessoa que acompanhou o caso mais de perto do que a maioria é Juliette Campion, uma jornalista sa que esteve no tribunal durante todo o julgamento para fazer uma reportagem para a emissora pública Info.

"Acho que este caso poderia ter acontecido em outros países, é claro. Mas acho que ele diz muito sobre como os homens veem as mulheres na França. Sobre a noção de consentimento", diz ela.

"Muitos homens não sabem o que é consentimento de fato, portanto [o caso] diz muito sobre nosso país, infelizmente."

Uma questão de 'Sr. Todo Mundo'

O caso Pelicot certamente está ajudando a moldar as atitudes em relação ao estupro na França.

Em 21 de setembro, um grupo de homens ses de destaque, incluindo atores, cantores, músicos e jornalistas, escreveu uma carta pública que foi publicada no jornal Libération, argumentando que o caso Pelicot provou que a violência masculina "não é uma questão de monstros".

"É uma questão de homens, de Monsieur-Tout-Le-Monde (algo como 'Sr. Todo Mundo')", dizia a carta.

"Todos os homens, sem exceção, se beneficiam de um sistema que domina as mulheres."

O texto também esboçava um "roteiro" para os homens que buscam desafiar o patriarcado, com conselhos como "vamos parar de pensar que existe uma natureza masculina que justifica nosso comportamento".

Alguns especialistas acreditam que o grande interesse público no caso Pelicot já pode estar gerando benefícios.

"Este caso é muito útil para todos, para todas as gerações, para meninos, meninas e adultos", diz Karen Noblinski, advogada baseada em Paris especializada em casos de abuso sexual.

"Ele aumentou a conscientização entre os jovens. O estupro nem sempre acontece em um bar, em uma boate. Pode acontecer na nossa casa."

A hashtag #NotAllMen

Mas há, claramente, muito mais trabalho a ser feito. No início do julgamento, me encontrei com Louis Bonnet, que é o prefeito do vilarejo natal dos Pelicot, Mazan.

Embora tenha sido categórico ao condenar os supostos estupros, ele declarou claramente — e por duas vezes — que achava que a experiência de Gisèle Pelicot havia sido exagerada, e argumentou que, como ela estava inconsciente, havia sofrido menos do que outras vítimas de estupro.

"Sim, estou minimizando, porque acho que poderia ter sido muito pior", afirmou ele, na época.

"Quando há crianças envolvidas ou mulheres mortas, isso é muito grave porque não se pode voltar atrás. Neste caso, a família vai ter que se reconstruir. Vai ser difícil, mas ninguém morreu. Então, eles ainda podem fazer isso."

Os comentários de Bonnet provocaram indignação em toda a França. Mais tarde, o prefeito emitiu uma declaração, expressando suas "sinceras desculpas".

Ilustração mostrando alguns dos réus durante o julgamento

Crédito, Reuters

Legenda da foto, Coletivamente, os réus acusados ​​de estuprar Gisèle Pelicot podem pegar mais de 600 anos de prisão, se forem condenados

Na internet, muitos dos debates em torno do caso se concentraram na sugestão controversa de que "todos os homens" são capazes de estuprar. Não há nenhuma evidência que sustente esta alegação. Alguns homens se opam ao argumento, usando a hashtag #NotAllMen.

"Não pedimos a outras mulheres que carreguem a 'vergonha' de mulheres que se comportam mal, por que o simples fato de ser homem nos qualificaria para carregar a vergonha");