'Sopro da morte': as memórias do golpe no Chile por ex-assessor de Salvador Allende

- Author, Fernanda Paúl
- Role, De Madri para a BBC News Mundo
- Twitter,
De terno e gravata, o advogado Joan Garcés, de 79 anos, abre a porta de seu escritório com um sorriso.
São 17h de um dia de setembro em Madri, capital da Espanha.
Em sua mesa há uma fotografia onde ele aparece com o ex-presidente do Chile, Salvador Allende (1970-1973), e Óscar Agüero, ex-embaixador do Chile na Espanha.
"Isso foi num fim de semana de 1972. Estávamos na casa de campo que [Allende] tinha nos arredores de Santiago", lembra ele, com certa nostalgia.
Joan Garcés é uma testemunha privilegiada do que aconteceu no Chile em 11 de setembro de 1973, dia do golpe militar que depôs Allende.
O espanhol chegou ao país sul-americano alguns anos antes, atraído pela história de Allende, com quem estabeleceu uma forte amizade.
Em 1970, quando Allende se tornou o primeiro presidente socialista do mundo a chegar ao poder por meios democráticos, Garcés se tornou seu conselheiro mais próximo.
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Três anos depois - e após meses de polarização e tentativas fracassadas de levantes militares - as Forças Armadas, lideradas por Augusto Pinochet, derrubaram o governo da Unidade Popular (UP), dando origem a um regime militar que durou 17 anos e deixou quase 40 mil vítimas, incluindo mais de 3.000 mortos ou desaparecidos.
No dia do ataque, Joan Garcés estava no palácio presidencial com Allende. Ele permaneceu ao seu lado até que o presidente lhe ordenou que deixasse o La Moneda para que pudesse transmitir ao mundo o que ali havia acontecido. Allende morreria pouco depois.
Garcés não só cumpriu a tarefa que lhe foi confiada, publicando livros como Allende e a experiência chilena. Ele também acabou se tornando o arquiteto da histórica prisão de Pinochet em Londres, em 1998.
Relutante em dar entrevistas e, sobretudo, em revelar fragmentos de sua vida pessoal, Joan Garcés contou à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, detalhes inéditos sobre o 11 de setembro e os dias que se seguiram, como sua complexa fuga do Chile.
Também deu especial ênfase à responsabilidade dos Estados Unidos na ruptura democrática no Chile e apela a uma condenação pública da Casa Branca, depois de a desclassificação de vários registos ter evidenciado o papel do país no golpe do Chile.
Confira abaixo a entrevista que ele deu à BBC.
BBC - Quero partir transportando você para 11 de setembro de 1973. O que você lembra daquele dia?
Joan Garcés - Esse dia foi uma data importante porque ao meio-dia estava previsto que o presidente Allende fizesse um discurso anunciando medidas econômicas de emergência ao país, além da convocação de um referendo para que os cidadãos pudessem escolher o caminho a seguir: o oferecido pelo governo ou o da oposição.
BBC - Pelo que entendi, naquele dia você chegou cedo ao palácio presidencial...
Garcés - Na noite de 10 de setembro houve uma reunião que terminou à 1h30 da manhã com o presidente, o ministro da Defesa (Orlando Letelier), o ministro do Interior (Carlos Briones), o diretor da Televisão Nacional (Augusto Olivares ) e eu.
Preparamos o discurso que Allende faria no dia seguinte.
E ei a noite na residência do presidente porque a reunião de trabalho ia continuar de madrugada.
Mas o diretor da Televisão Nacional, que também dormira lá, me acordou por volta das 7h15 da manhã contando que havia um levante da Marinha na zona portuária de Valparaíso (no litoral chileno, a 117 km da capital, Santiago).

Crédito, Arquivo Pessoal Joan Garcés
BBC - E então?
Garcés - Depois fomos ao palácio presidencial, junto com o presidente.
O presidente entrou com a informação de que o Exército era leal e assumiu seu posto de comando para dirigir a defesa do sistema constitucional. Com o ar da reunião, chegou a informação de que o golpe estava em andamento.
Às 8h30 da manhã, o primeiro comando da junta pediu a Allende que entregasse a sua legitimidade como chefe de Estado à junta militar, algo que ele evidentemente se recusou a fazer.
Por volta das 9h, o presidente fez seu último discurso e, quando terminou, começaram os ataques da infantaria, o ataque blindado e aéreo que durou até por volta das 13h30. O palácio estava em chamas, com fumaça, não dava para respirar.
O presidente ordenou aos seus colaboradores que abandonassem o palácio porque era impossível continuar ali devido à fumaça e ao fogo.
BBC - Você ficou ao lado do presidente Allende o tempo todo?
Garcés - Sim, eu estava com ele. Fiquei ao seu lado durante toda a manhã até às 11h15, altura em que ele me disse para ir embora, o que salvou a minha vida.
BBC - Como foi esse diálogo quando Salvador Allende ordenou que você saísse do Palácio La Moneda?
Garcés - Foi no horário em que ele reuniu todos os seus colaboradores, por volta das 11h. Explicou que a sua obrigação e dever era defender o que representava como chefe de Estado e chefe das Forças Armadas. Mas não fazia sentido que o resto de nós morresse e ele nos liberou.
Naquele momento ele se virou para mim, não sei por que, e me pediu para ir embora. E eu perguntei a ele a razão. E ele me deu motivos.
Um deles era que alguém tinha que contar o que havia acontecido ali.
"E só você pode fazer isso", ele me disse. Porque fui seu colaborador mais direto. Ele olhou para os outros colegas e todos assentiram.
Ele me acompanhou até a porta e eu saí. É por isso que estou vivo.
BBC - No momento em que estava na porta do La Moneda, hesitou em sair?
Garcés - Hesitei, expressei minha discordância e por isso Allende me deu razões. Porque me opus à sua decisão. Mas evidentemente ele estava absolutamente certo.

Crédito, Getty Images
BBC - Você já se arrependeu de ter saído?
Garcés - Não posso me arrepender, pois foi o que salvou minha vida. Vou te contar uma história.
Dois dias após o golpe, o diretor-geral da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, pertencente à ONU), Enrique Iglesias, dirigiu-se ao almirante (Ismael) Huerta, que chefiava o Ministério das Relações Exteriores dos golpistas, para interceder por mim.
Ele disse que se havia duas pessoas que queriam prender era o secretário-geral do Partido Socialista (Carlos Altamirano) e eu, conselheiro pessoal do presidente.
E de fato, na ata secreta da reunião, no número dois, datada de 13 de setembro, há três linhas nas quais os participantes concordam em me prender se eu for localizado.
Isto é, Allende salvou a minha vida.
BBC - Voltando ao ataque ao La Moneda: você chegou a duvidar do que estava acontecendo? Pergunto isso por causa do número de tentativas de golpe que ocorreram antes do 11 de setembro...
Garcés - Eu havia levado um pequeno rádio portátil e às 8h30 da manhã, quando ouvi o lado dos insurgentes pedindo a Allende a transmissão do comando. Naquele momento ficou muito claro para mim que as informações que tínhamos, de que o Exército era leal, estavam incorretas.
Quando começou o ataque, que foi meu batismo de fogo, foi realmente impressionante. Quando você vê que eles estão metralhando, atacando com tiros de canhão...
Nós, colaboradores do presidente, ficamos muito chocados com o que estava acontecendo. O que contrastava com a absoluta serenidade e tranquilidade do presidente.
Naquele dia, ele estava muito sereno e controlado.
BBC - E como você estava?
Garcés - Eu senti que poderia morrer. Nesse momento você pensa na morte.
Peguei um telefone e liguei para um amigo. Dei o endereço e o telefone dos meus pais na Espanha para que ele explicasse por que eu havia morrido.
Eu estava me despedindo da vida.
BBC - Vocês estava disposto a morrer ali?
Garcés - Não só eu.
Quando o presidente reuniu todos os seus colaboradores civis, dizendo-lhes que estavam livres para partir, nenhum deles saiu.
Todos ficaram com ele.
Após a agressão, todos foram presos, a maioria foi torturada, assassinada e alguns desapareceram.
A equipe pessoal do presidente do Chile foi exterminada exatamente em 48 horas.
BBC - O que mais você lembra daquele dia?
Garcés - Me lembro que, naquela manhã, cheguei ao La Moneda com a minha pasta com os documentos de trabalho, com o discurso que estava previsto para esse dia.
Quando eu ia sair, o presidente me acompanhou até a porta da frente e me perguntou: "O que você tem nessa pasta"O ex-presidente Jair Bolsonaro, sua esposa Michelle Bolsonaro e o ex-ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência do Brasil Onyx Lorenzoni em culto evangélico em julho de 2019 " loading="lazy" width="2044" height="1150" style="aspect-ratio:2044 / 1150" class="bbc-139onq"/>