O enigma das esculturas de 'Vênus' da Era do Gelo

Legenda do áudio, Mais de um século e meio após a descoberta da primeira estatueta de Vênus, as mesmas dúvidas persistem: quem as esculpiu e qual o seu propósito?
  • Author, Zaria Gorvett
  • Role, BBC Future

É uma noite típica na caverna Hohle Fels, perto do ano 38.000 a.C.

No lado de fora, há uma estepe gelada e estéril — um cenário congelado, com poucas árvores, por onde vagueiam leões-das-cavernas e ursos-das-cavernas.

Mas, no lado de dentro, está se desenvolvendo uma acolhedora cena doméstica.

Um grupo de caçadores-coletores descansa em uma ampla sala de estar natural, completa, com um teto que parece o de uma catedral, de cerca de 30 metros de altura. O salão é iluminado pelo brilho trêmulo de uma fogueira.

Uma mulher acaricia despreocupadamente um pequeno boneco de marfim pendurado no pescoço — seu pertence mais valioso. Por perto, alguém talha ferramentas de pedra.

O som rouco e inquietante de uma flauta de ossos de abutre permeia o ambiente, tomado pelo cheiro de carne de mamute assada.

Esta é uma cena plausível. Ela pode realmente ter acontecido.

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Cerca de 40 mil anos se aram até que arqueólogos escavassem aquele mesmo local — uma caverna de calcário que, hoje, fica no sudoeste da Alemanha — e descobrissem seis estranhos fragmentos de marfim, enterrados sob uma camada de três metros de sedimentos.

Os fragmentos eram minúsculos. Eles foram colados de volta e formaram uma estatueta: uma mulher com apenas 6 cm de altura e um anel no topo, em vez da cabeça — provavelmente, para poder ser usada como pingente.

Trata-se da Vênus de Hohle Fels, que se acredita ser a mais antiga representação de um ser humano já encontrada.

A descoberta ocorreu em 2008 e é uma das mais recentes dentre centenas de achados similares, que começaram a ser desenterrados no século 19: as estatuetas de Vênus.

Essas pequenas esculturas, normalmente, não têm rosto e nem mesmo cabeça. Muitas vezes, suas características sexuais são exageradas, com seios protuberantes, grandes nádegas, quadris largos, vulvas claramente definidas e dobras de gordura em torno da cintura.

Elas foram encontradas ou desenterradas em toda a Europa e na Ásia, desde os sopés verdejante dos Pireneus, entre a França e a Espanha, até as selvagens terras onduladas da Sibéria central, na Rússia.

Mas o mais notável talvez seja que a imensa maioria das obras de arte — muito mais numerosas do que qualquer outra representação da nossa espécie da Idade da Pedra que tenha chegado até nós — representa mulheres.

"É muito surpreendente... 99% delas são mulheres", afirma a professora de pré-história da humanidade Katharina Rebay-Salisbury, da Universidade de Viena, na Áustria.

Este é o enigma das estatuetas de Vênus, que já dura 160 anos. Quem as terá feito e por quê?

Seriam elas deusas "mães" em miniatura, representações tangíveis da fecundidade feminina? Ou serão simplesmente ícones sexuais do paleolítico, as primeiras mulheres a serem transformadas em objetos, figurativa e literalmente?

A Vênus de Hohle Fels é a representação mais antiga de um ser humano já encontrada.

Crédito, Alamy

Legenda da foto, A Vênus de Hohle Fels é a representação mais antiga de um ser humano já encontrada.

Padrão surpreendente

Uma das primeiras estatuetas de Vênus desenterrada pelos arqueólogos foi encontrada no vale do Vézère, no sul da França, em 1864. A região é conhecida como o berço da humanidade, devido à alta densidade de sítios pré-históricos.

A estatueta foi encontrada por um marquês curioso, que estava cavando o terreno que havia acabado de ar por uma escavação arqueológica profissional.

A esguia miniatura é incomum, pois parece representar o tronco nu de uma jovem. Acredita-se que ela tenha sido feita pela cultura magdaleniana, que teve uma existência relativamente confortável e rica em produções artísticas, cerca de 11 mil a 17 mil anos atrás.

O marquês a batizou de "Vênus impudica", aparentemente uma referência bem-humorada às "Vênus pudicas" da arte clássica — estátuas de mulheres tentando cobrir sua nudez, muitas vezes sem muito sucesso.

De lá para cá, foram descobertas mais de 200 estatuetas de Vênus, feitas de argila ou esculpidas em uma grande variedade de materiais, como marfim, azeviche, chifres, ossos e diversos tipos de rochas.

Algumas são simples e mostram apenas indícios da forma feminina, mas outras foram produzidas com grande cuidado e maestria artística.

Mas o que atrai os pesquisadores há mais de um século e meio não são tanto as suas diferenças, mas as similaridades.

"Eu acho que elas são fascinantes porque são muito difundidas e [foram produzidas] em um espaço de tempo muito grande", afirma Rebay-Salisbury. "Temos estatuetas que se parecem, do ano 17.000 a.C. e de 38.000 a.C. Como é possível relacionar esse espaço de tempo inacreditável");